Graciliano Ramos e as memórias do fanatismo
Edberto Ticianeli
Mesmo sabendo que o fanatismo não é considerado como uma doença, tendo a acreditar que em algumas pessoas suas manifestações estão bem próximas de se tornar um distúrbio psiquiátrico.
Comecei a refletir sobre isso ao acompanhar, na TV Senado, os depoimentos na CPI da Covid.
Surpreendi-me, principalmente, ao constatar que mesmo no Senado persistem as pregações raivosas e agressivas sobre o uso da cloroquina como medicamento preventivo contra o vírus.
Claro que também percebi a pobreza intelectual da maioria dos representantes dos Estados, o que os afasta anos luz do exercício do papel revisor, resquícios do poder moderador que um dia já foi atribuição daquela casa legislativa.
Ao tentar estabelecer a relação entre o despreparo político e o fanatismo, lembrei-me de uma passagem do livro Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, onde fica claro que essa afinidade não existe.
Preso como comunista em 1935, Graciliano Ramos foi arrancado de casa, levado até Recife por via ferroviária e de lá, por navio, para o Rio de Janeiro.
Após a primeira noite no porão da embarcação, onde se entulhavam dezenas de pessoas aprisionadas como revolucionários, Graciliano ficou frente a frente com “um caboclo baixo, membrudo, hirsuto, a camisa de algodão aberta, deixando ver um rosário de contas brancas e azuis misturadas à grenha que ornava o peito largo”.
Estranhando o instrumento de devoção pendurado no pescoço de alguém que estava preso como comunista, Graciliano caiu na besteira de fazer uma pergunta carregada de crítica:
– O senhor usa isso, companheiro?
Então ouviu o que não esperava do sujeito furioso:
– Quando a nossa revolução triunfar, ateus assim como o senhor serão fuzilados.
Graciliano conta que se afastou para rir da situação e tentou encontrar um conhecido para “pedir informações a respeito do estranho revolucionário”. Soube que era um beato e que se chamava José Inácio.
“Homem de religião, homem de fanatismo, desejando eliminar ateus, preso como inimigo da ordem. Contrassenso. Como diabo tinha ido ele parar ali? Vingança mesquinha de político da roça, denúncia absurda, provavelmente – e ali estava embrulhado um eleitor recalcitrante, devoto bisonho do padre Cícero. Com certeza havia outros inocentes na multidão, de algumas centenas de pessoas”, o descreveu o escritor alagoano.
O que esse episódio revela é que Graciliano Ramos também demonstrava zelo extremado na defesa de suas convicções políticas e filosóficas.
Mesmo sem desejar o “fuzilamento” dos adversários, não escondia o discurso e os gestos de menosprezo por quem professasse “devoção bisonha ao Padre Cícero” ou usasse um “rosário de contas brancas e azuis”.
Um aprendizado. Não basta ter boa formação educacional para escapar das armadilhas e tentações para negar desrespeitosamente quem pensa diferente.
Terminada esta exposição, que espero contribua na melhoria do ambiente político tão conflitado, fiquei a pensar:
“Se depois de acompanhar as sessões com os depoimentos dos ex-ministros Mandetta e Teich lembrei de Memórias do Cárcere, começo a temer que o depoimento do Pazuello me remeta a Angústia, do mesmo Graciliano Ramos”.
Já estou lendo: “No momento em que um cristão bota o laço no pescoço o diabo monta nos ombros dele”.
Excelente análise!!
Apenas uma observação: não está atribuído ao Senado o exercício do poder moderador, considerando que a CF de 88 não prevê esta figura, que foi extinta desde a proclamação da República.