Da fonte ao consumidor
Edberto Ticianeli
Durante muitos anos de sua vida meu pai foi membro ativo do clube dos amigos da farra. Parou de beber e fumar no final dos anos 50, quando casado e pai de dois filhos estava de volta à Pão de Açúcar em Alagoas.
Parou de forma radical. Nunca mais ingeriu bebida alcoólica ou acendeu um cigarro. Mas antes dessa tomada de consciência, aprontou muitas por esse Brasil afora motivado pelo álcool.
No início dos anos 40, em plena Segunda Guerra Mundial, Gilberto tinha um bar bem próximo ao Porto de Santos, São Paulo. O empreendimento estava dando certo, para surpresa dele e dos amigos, pois contrariava a máxima que recomenda não entregar às raposas os cuidados com o galinheiro.
Com o início dos ataques aos navios brasileiros por parte dos submarinos alemães, foi determinado o blecaute nas cidades portuárias e o bar fechou as portas.
Dois anos depois, quando morava no Rio de Janeiro com uma irmã, entrou numa farra e ao amanhecer do dia, já embriagado, caminhava com os amigos conversando sobre a guerra e a necessidade de todos se colocarem à disposição da Força Expedicionária Brasileira, que naquele período estava sendo estruturada.
— Se precisar de mim, estarei pronto para embarcar hoje. É preciso vingar os brasileiros assassinados pelos nazistas com o afundamento dos nossos navios! — bravateava Gilberto, mal conseguindo ficar de pé.
Estavam chegando à Praça Onze quando um dos boêmios viu uma enorme fila diante de um antigo prédio.
— Pronto, Gilberto! Você agora vai poder participar da guerra. Essa fila é para a inscrição de voluntários. Quero ver agora se você é mesmo um homem disposto!
No mesmo momento meu pai entrou na fila e abandonou o grupo. Lá permaneceu até 8 horas da manhã, quando o atendimento começou. Com o efeito do álcool se dissipando, Gilberto dava alguns passos, parava, refletia, cada vez mais sóbrio, sobre a decisão de ir para guerra.
Andou um pouco mais, saiu da fila e disse para os que ficaram:
— Meus senhores, lamento não poder ir para a guerra com vocês, mas desejo que derrotem os alemães e voltem com vida.
Espantadas, as pessoas olharam para ele e um magrinho resolveu esclarecer:
— Meu senhor, essa fila é dos que querem emprego na construtora que participa das obras da Avenida Presidente Vargas.
Não foi para a guerra, mas resolveu percorrer o país trabalhando nas mais diversas profissões. Não se fixando em lugar algum.
No início dos anos 50 estava de volta à São Paulo, onde conseguiu com um amigo emprego na Companhia Antarctica Paulista, sendo alocado no almoxarifado da fábrica da Mooca.
A provocação era grande para um boêmio. Comentava com os amigos de farra que trabalhava a poucos metros de milhares de litros de cerveja e não podia tomar um copo dela.
Essa verdadeira “tortura” o levou a colocar toda sua inventividade em funcionamento para encontrar uma forma de participar dos “lucros” da empresa sem ser acionista. E encontrou um jeito.
Num domingo pela manhã, convidou alguns amigos mais próximos e os levou, já devidamente munidos de copos e petiscos, para próximo de uma das portas laterais da fábrica, de onde, utilizando um arame, puxou para fora uma mangueira dobrada na ponta.
A origem da cerveja ele nunca detalhou quando contava esse caso, mas imagino que deve ter usado algum recipiente onde despejou vários litros da bebida e o aproximou desta lateral não utilizada para acesso à empresa.
O importante é destacar que assim começou uma das suas maiores farras em São Paulo.
Era só desdobrar um pouco a mangueira que a cerveja fluía aos litros para satisfação do grupo, que não tardou a ser ampliado por dezenas de outros boêmios, atraídos que foram por aquele barulhento festival de cerveja, que tinha como fonte Antarctica e saía direto para o consumidor, sem intermediários.
O resultado desse ato inconsequente, além da tremenda ressaca, foi a demissão por justa causa do alagoano responsável pelo almoxarifado, devidamente registrada na sua carteira de trabalho.