Estudantes, Generais, Liberdade de Expressão e Ditadura Militar
Edberto Ticianeli
Foto principal: Presidente Ernesto Geisel e seus ministros Hugo Abreu, Golbery do Couto e Silva e Azevedo da Silveira.
Chegamos a São Paulo no final da tarde do domingo, dia 1º de outubro de 1978. A delegação alagoana ao IV Encontro Nacional dos Estudantes era composta por Enio Lins, Edberto Ticianeli, Mário Agra, Maurício de Macedo e Sérgio Barroso. Aldo Rebelo já se encontrava em São Paulo.
Pelo combinado, haveria um pessoal do DCE da PUC, liderado pela Libelu, para nos receber na Rodoviária e nos encaminhar ao alojamento.
Como havia temor diante da possiblidade de repressão ao encontro, essa nossa chegada deveria ser discreta e teríamos que sair do local o mais rápido possível.
Não tinha ninguém da Liberdade e Luta nos esperando e fomos fotografados por um agente que sequer fez questão de esconder que estava nos vigiando.
Naquela noite, graças a um amigo, dormimos num local improvisado, no chão de uma casa vazia, sem móvel algum.
Na segunda-feira, dia 2 de outubro pedimos “asilo político” no pequeno apartamento do Lerinho, onde dormimos as três noites seguintes. O médico alagoano dr. Luiz Fernando, Lero para os amigos, trabalhava no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo.
O IV ENE, com delegações de São Paulo, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Alagoas, Paraná, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Minas Gerais e Distrito Federal, realizou as duas plenárias previstas, na terça e quarta-feira, na Faculdade de Arquitetura da USP (FAU-USP), sem maiores problemas para surpresa de todos.
Temia-se que ocorresse a mesma intervenção policial do ano anterior, que impediu a realização do III ENE em três tentativas, duas em Belo Horizonte (junho de 1977) e outra em São Paulo (22 de setembro). Na terceira tentativa ainda se chegou a aprovar a formação da Comissão PróUNE, antes que a polícia invadisse a PUC-SP com violência, deixando alguns feridos e prendendo cerca de 400 estudantes. Destes, 41 foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional.
Para o III ENE em Belo Horizonte, Alagoas enviou Aldo Rebelo e Edberto Ticianeli. Em Salvador foram avisados das prisões, inclusive a de Valdélio Santos Silva, presidente do DCE da UFBa, que foi detido em Teófilo Otoni.
Hugo Abreu
Foi lembrando desse histórico de repressão que as delegações chegaram a São Paulo para o IV ENE.
O receio aumentou quando, na segunda-feira (2), os jornais anunciaram que o general de divisão (três estrelas) Hugo Abreu poderia ser preso a qualquer momento por ter infringido à disciplina militar ao enviar carta a 20 generais denunciando a corrupção existente na administração federal.
Na terça-feira, dia da abertura do IV ENE, os jornais estamparam que o ministro do Exército, general Fernando Bethlem, havia determinado a prisão do general Hugo Abreu por 20 dias, em uma dependência do Estado Maior do Exército.
Hugo Abreu era um entusiasta da candidatura do general Euler Bentes Moanteiro (MDB) à presidência da República no Colégio Eleitoral e também havia criticado a escolha do general João Baptista Figueiredo como sucessor do presidente general Geisel.
Nenhum jornal da época publicou a menor reclamação de qualquer autoridade por restrição à liberdade de expressão.
Hugo Abreu sabia que o vazamento da sua carta merecia punição e a acatou. Fez mais: divulgou por meio do jornalista Pompeu de Souza, chefe do escritório eleitoral da candidatura Euler Bentes, a solicitação aos militares aliados a ele, que se abstivessem de tomar qualquer atitude de represália.
Hugo Abreu era um militar de esquerda? Longe disso.
Tinha um histórico invejável como integrante da Força Expedicionária Brasileira, onde foi condecorado com a Cruz de Guerra de 1ª Classe por atos de bravura em combate. É a mais alta condecoração brasileira.
Foi um dos oficiais do Exército Brasileiro a estudar em Fort Benning, nos Estados Unidos, nos anos 1950. Os alunos desta instituição foram atuantes no Golpe Militar de 1964 e Hugo Abreu cumpriu papel de destaque nas ações que derrubaram o presidente João Goulart.
Em 1973, já era o comandante da Brigada de Infantaria Paraquedista, atuando nas operações contra a Guerrilha do Araguaia e contra as organizações de esquerda no Rio de Janeiro.
Quando da rebelião do corpo de oficiais da Brigada, no Rio de Janeiro em 1969, foi Hugo Abreu quem foi chamado para disciplinar os revoltosos, um grupo de oficiais insatisfeitos com a forma como o governo conduziu a negociação com os sequestradores do embaixador americano Charles Burke Elbrick.
Foi chefe do Gabinete Militar no governo do presidente Ernesto Geisel por um acaso. O cargo seria ocupado pelo general Dilermando Gomes Monteiro, mas este quebrou a perna ao cair de bicicleta em um passeio.
Não era muito prestigiado pelo presidente, que foi quem escolheu a equipe do gabinete militar. Também não o deixaram morar na Granja do Torto, onde residiram todos os chefes daquele gabinete desde 1964. Quem ocupava a Granja era o general João Batista Figueiredo, do SNI.
Teve forte atuação política no governo, sendo o responsável, em 12 de outubro de 1977, pela exoneração do antigo aliado, o ministro do Exército Sílvio Frota, que havia se colocado, “na marra”, na linha sucessória de Geisel e desafiava a autoridade do presidente.
Naquela data, foi a primeira exoneração de um ministro de Exército desde 1964. Frota ainda tentou reagir convocando uma reunião do alto comando para iniciar a insurgência. Sem conseguir mobilizar os aliados (tinha sido chamados antes para uma conversa com Geisel), divulgou um manifesto manuscrito de oito páginas, de circulação restrita, criticando o abandono dos objetivos da “Revolução”, o “capitalismo de Estado” e destacando a ameaça do “totalitarismo marxista” e da “infiltração comunista” na imprensa e no governo.
Desse grupo “frotista”, continua em atividade política o general Augusto Heleno, atual ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República do governo Bolsonaro.
Poucos meses depois, em janeiro de 1978, foi a vez de Hugo Abreu deixar o governo. Não concordava com Geisel, que havia definido como seu sucessor o general Figueiredo. Argumentou essa opção era “descer na escala hierárquica”, considerando que o escolhido era um general de divisão, faltando-lhe a quarta estrela de general de exército (Euler Bentes era general de exército).
O outro lado do poder
Publicado em 23 de abril de 1979, “O outro lado do poder“, livro-denúncia de Hugo Abreu sobre a corrupção no governo militar, já causava enorme balburdia entre os militares do governo antes do seu lançamento. Discutia-se a disciplina dos oficiais da reserva.
No dia 7 de maio de 1979, Hugo Abreu foi preso novamente e cumpriu mais 20 dias de cadeia. O ministro do Exército, general Walter Pires, definiu a punição por ter o militar tornado “público assuntos militares e outros de caráter oficial, capazes de concorrer para a discórdia entre militares, ofender e procurar desconsiderar seus superiores hierárquicos, em flagrante violação da ética militar”.
No livro, Abreu revelou que no período Geisel, quando a oposição começou a crescer e ameaçar nas urnas o poder dos militares, o governo fraudou algumas eleições regionais para manter o partido do governo (Arena) vitorioso nas cidades mais importantes. Foi essa situação que o fez se afastar do governo.
“As eleições de 78 representam o maior esbulho da vontade popular que já aconteceu no Brasil depois de 1930. Trata-se de um retrocesso perigoso. É a desmoralização das nossas instituições democráticas. E o que virá depois disso?”, criticou Hugo Abreu.
Avaliou também que a maioria do Exército não gostava do general Figueiredo e não aprovou a sua indicação para a presidência da República. A escolha foi feita por um grupo que pretendia “eternizar-se no poder” e que atuava de forma não muito ética, chegando ao ponto de instalar escutas telefônicas ilegais para vigiar os outros membros do governo.
Hugo Abreu queria um civil na presidência da República, mas que tivesse o compromisso de facilitar a retirada dos militares do poder.
Não acreditava que o general Figueiredo teria condições de fazer essa travessia. O considerava “inteiramente despreparado para a função, além de fraco intelectualmente e de pouca cultura”.
Figueiredo comprovou isso em agosto de 1978, quando, ainda chefe do SNI, procurava melhorar sua imagem e assim facilitar sua indicação para presidente. Queria ser conhecido como “João do Povo”.
Concedia uma entrevista sobre a sua afeição por cavalos e o repórter perguntou se ele gostava do “cheiro do povo“, fazendo referência aos políticos que em campanha abraçam eleitores e beijam crianças. “O cheirinho do cavalo é melhor (do que o do povo)”, respondeu sem pestanejar.