Radjalma Cavalcante e o grito por “Liberdade, Liberdade” em 1967

Edberto Ticianeli

O material que apresentaremos a seguir foi adaptado de um depoimento do professor Radjalma Cavalcante concedido à estudante Fabiana de Paula, então do 4º período do Curso de Teatro (Licenciatura) da Ufal, em 16 de setembro de 2013.

Radjalma, que nos deixou no dia 31 de janeiro de 2022, descreveu com detalhes o seu envolvimento na reação à censura imposta em Alagoas à peça “Liberdade, Liberdade”, uma obra de Flávio Rangel e Millôr Fernandes lançada em 1965 e que circulou o Brasil em montagens dos grupos Opinião e Teatro de Arena de São Paulo.

Na entrevista, após situar o ano de 1967 como sendo de um período pós-golpe militar, quando as atividades culturais viviam sob a vigilância dos órgãos de repressão do governo, inclusive com a prática da censura, o professor lembrou que naquele ano ele era o presidente do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal de Alagoas.

***

“Assumimos a presidência do DCE com a preocupação de levar a juventude a participar dos debates culturais, quer seja por intermédio do teatro, do cinema e etc, mas que debatesse os assuntos do seu país, da sua região.

Vivíamos esse momento histórico no início de 1967, quando, um belo dia abro o jornal e vejo que Liberdade, Liberdade seria apresentada em Maceió. Procurei obter informações sobre a peça e descobri que era uma colagem de textos sobre a importância da liberdade para o ser humano e para a sociedade. Era uma valorização da liberdade. Essa montagem que viria a Alagoas era liderada por Paulo Autran, Tereza Raquel e Luíza Maranhão, que eram grandes artistas naquela época.

Considerei então que essa peça seria muito importante para juventude e fiquei todo satisfeito, pensando em fazer um debate com os estudantes sobre a importância do tema e da sua encenação. Foi então que, para surpresa nossa, no outro dia a manchete no jornal anunciava que ela não seria mais apresentada em Maceió.

Fui ao Teatro Deodoro saber do seu diretor o que tinha acontecido. Bráulio Leite Júnior, que era um grande amigo de muito tempo, me pediu reservas e explicou que tinha sido obrigado a dizer, por ordem do delegado de Ordem Política e Social, que o Teatro Deodoro não tinha pauta para aquela apresentação.

Fiquei revoltado com isso, mas dois ou três dias depois leio nos jornais que a peça estava sendo apresentada em Recife. Não tive dúvidas, peguei o ônibus e me mandei para Recife e à noite estava aplaudindo Liberdade, Liberdade no Teatro Santa Isabel.

Quando terminou, umas 11h da noite, me dirigi aos fundos do teatro e fiquei esperando a saída do Paulo Autran. Quando ele apareceu, chamei sua atenção e ele se aproximou perguntando o que eu queria. Disse que era o presidente do DCE da Ufal e que tinha interesse em levar a peça para uma apresentação em Maceió.

Respondeu que a peça não poderia se apresentar em Maceió por falta de pauta no Teatro Deodoro. Expliquei a ele que havia pauta e que tinha sido utilizada essa desculpa por ordem da Delegacia de Ordem Política e Social.

Indaguei sobre onde aconteceria a próxima apresentação e fui informado que seria em João Pessoa, na sexta-feira ou no sábado. Então disse que queria fazer um acerto com ele e pedi que antes de confirmar com João Pessoa aceitasse esperar um telefonema meu até o dia seguinte às 17 horas, que eu ia tentar liberar a peça em Maceió.

Ele olhou para mim com ar de admiração e disse:

— Menino, estou percorrendo o Brasil com essa peça justamente para ouvir coisas como esta que você está me dizendo, provocações como esta que você está me fazendo. Se você até amanhã às 17h me garantir que vou poder apresentar a peça em Maceió, cancelo João Pessoa e boto Maceió na frente.

Concordei e saí dali direto para o Diário de Pernambuco, onde tinha amigos jornalistas, e concedi uma entrevista sobre o assunto para a edição do dia seguinte. Em seguida, perto da meia-noite, fui para a beira da estrada, onde consegui carona na carroceria de um caminhão e vim até Maceió deitado num monte de areia.

Cheguei em Maceió entre 5 e 6 horas da manhã e, em casa, caí na cama. Às 8:30 da manhã o telefone tocou e minha mãe foi me acordar dizendo que queriam falar comigo lá do Palácio do Governo. Quem estava ao telefone era o coronel Gerson Argolo, da Casa Militar.

Atendi e ouvi dele que o governador Lamenha Filho tinha visto no jornal uma matéria sobre a peça Liberdade, Liberdade e que ele não estava entendendo e queria que eu fosse ao palácio explicar o que estava acontecendo.

Saí de casa — morava na Ladeira do Brito — e no caminho peguei o jornal Diário de Pernambuco. Vi a reportagem sobre entrevista que tinha concedido na noite anterior em Recife. A matéria tinha saído mais ou menos com esses dizeres: Peça Liberdade, Liberdade foi proibida pelo Governador. Estudantes farão hoje uma grande passeata em sinal de protesto.

Minutos depois, já no Palácio dos Martírios, Lamenha me recebeu dizendo que não queria confusão com os estudantes e me perguntou sobre a proibição da peça atribuída a ele. Respondi dizendo que ele não tinha proibido, mas o delegado de Ordem Política e Social dele tinha proibido.

Era umas 10h da manhã quando ele me disse para ir até o delegado e dizer a ele que o governador pedia para liberar a peça.

Fui para a Rua do Macena, onde funcionava o DOPS, e quando entrei na delegacia o delegado fez cara feia pra mim. Não gostava muito de mim. Me achava subversivo. Disse a ele que o governador tinha mandado ele liberar a peça. Respondeu: — Você num é besta não! Você não tá vendo que eu não vou liberar essa peça.

Pedi permissão a ele para usar o telefone e liguei para o governador: — Governador, o delegado está dizendo que não vai liberar não. Lamenha pediu para passar o telefone para ele e conversaram um bocado.

Depois o delegado se dirigiu a mim dizendo que teria que liberar a peça e me advertiu: — Mais uma na sua continha pra você depois pagar. Você vai ver depois que vai acontecer com você.

Me despedi e fui direto para o Teatro Deodoro, onde cheguei umas 10h30 da manhã. Procurei o Bráulio Leite e informei que a peça ia ser apresentada no Deodoro e pedi autorização para ligar de lá para o Paulo Autran, que confirmou tudo e marcamos para sexta-feira e sábado.

Aproveitei e disse ao Bráulio que também queria colocar uma placa comemorativa da peça no Teatro. Ele me respondeu que naquele teatro eu fazia o que quisesse.

Fui para a Casa das Placas e encomendei uma com os seguintes dizeres: ‘Neste dia Paulo Autran apresentou a peça Liberdade, Liberdade. Homenagem dos universitários. 11 de janeiro de 1967’.

Saí da Casa das Placas todo satisfeito e na Praça Deodoro encontrei meu amigo jornalista Luiz Gutemberg e lhe disse o que estava acontecendo. Ele me desafiou a mudar os dizeres da placa, opinando que faria mais sentido da seguinte forma: ‘Neste teatro Paulo Autran cantou a liberdade. Homenagem dos Universitários’. Assim foi feito.

Na manhã da sexta-feira, após conseguirmos uma kombi com o Sabino Romariz na Faculdade de Filosofia, fomos ao hotel e de lá levamos Paulo Autran, Tereza Raquel e Luiza Maranhão até a praia de Riacho Doce. Tomamos banho de mar, conversamos um bocado e à 4h da tarde levamos o Paulo Autran para um debate com os estudantes na Faculdade de Economia, que ficava na Praça dos Martírios.

Liberdade, Liberdade lotou o Teatro Deodoro nas duas noites em que se apresentou em Maceió. No sábado, última apresentação, no intervalo da peça, fui lá na frente, peguei o microfone e convidei toda a plateia para assistir à inauguração da placa. Anunciei que o ato seria realizado por Paulo Autran e pelo reitor da Ufal, A. C. Simões, que informei estar ali presente, surpreendendo-o.

Quando desci e passei ao lado dele, me perguntou: — Radjalma, o que você está aprontando pra mim? Disse a ele que não era nada e que ficasse tranquilo.

Quando a placa foi descerrada, com o Paulo Autran de um lado e o reitor do outro, seus dizeres causaram impacto. No outro dia os três jornais de Maceió publicaram a fotografia em suas primeiras páginas.

Quem quiser comprovar, vá ao Teatro Deodoro que verá do lado esquerdo, na entrada, a placa que colocamos no dia 11 de janeiro de 1967.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

3 comentários em “Radjalma Cavalcante e o grito por “Liberdade, Liberdade” em 1967

  • 1 de fevereiro de 2022 em 21:07
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    Grande Radjalma, meu conterrâneo de Capela. Tive o orgulho de ser aluno dele na Ufal!

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  • 2 de fevereiro de 2022 em 08:08
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    Pessoas assim, realizações dessas são nossas vitórias contra os assassinos da Liberdade!

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  • 2 de fevereiro de 2022 em 14:46
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    Depoimento emocionante e revelador de um homem na vanguarda do seu tempo! Fica o seu legado para nós, professores, estudantes e toda a sociedade, alagoana, brasileira. Viva Prof. Radjalma!

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