Mestre Venâncio e a Lei do Patrimônio Vivo de Alagoas
Edberto Ticianeli
Quatro meses após assumir a Secretaria de Cultura do Estado de Alagoas, em 2004, eu ainda não tinha conseguido convencer uma pequena parte dos servidores a cumprir o horário de atendimento ao público, que era das 8h às 14h.
Como às 9h ainda tinha funcionário chegando para trabalhar, resolvi premiar os que cumpriam horário e criei um café da manhã entre 8h e 8h30. Não tinha nada de excepcional. Era montado para atender as duas dezenas de servidores que precisavam deste estímulo. Quem chegasse até às 8h30 era recebido com café, leite, pão, manteiga e algumas fatias de queijo e apresuntado. Depois dessa hora a mesa era retirada.
Dias depois de iniciado esse serviço, estava no gabinete quando o Clayton Rosas abriu a porta e ouvi o som característico de muitas pessoas falando ao mesmo tempo. Perguntei o que estava acontecendo e ele, rindo da situação, me convidou para ver o “tumulto”.
O aglomerado em torno da mesa com o café da manhã era muito maior que o previsto e tinha uma composição diversa da que se pretendia: lá estavam muitos artistas e brincantes dos nossos folguedos.
Alguns se aproximaram para conversar demonstrando satisfação e agradecendo pelo que estávamos oferecendo. Um deles me disse que estava ali para o café e que aquela comida também seria o seu almoço.
Saí dali assumindo comigo mesmo o compromisso de imediatamente colocar em andamento uma iniciativa que vinha adiando por falta da elaboração de sua peça principal.
Como participava do Fórum Nacional dos Secretários Estaduais de Cultura, tinha conhecimento que no Ceará e em Pernambuco já estava em funcionamento a Lei dos Mestres, como popularmente ficou conhecida esse contrato de serviços com quem detém saberes e fazeres da nossa cultura.
Estudei as duas leis já existentes e me atrevi, usando os parcos conhecimentos da técnica legislativa herdados de um mandato de vereador, a esboçar o que seria a instituição do Registro do Patrimônio Vivo.
Levei o rascunho de Projeto de Lei ao então governador Ronaldo Lessa para encontrar os mecanismos que viabilizassem a parte mais sensível da futura norma: o dinheiro para pagar os mestres. Lessa não vacilou: mandou encaminhar o processo para os órgãos competentes. Ficou surpreso quando disse a ele que acompanharia pessoalmente a tramitação e que pretendia vê-la aprovada antes do Dia do Folclore, 22 de agosto. Estávamos em maio de 2004.
Assim fiz. A tramitação da Procuradoria Geral do Estado e a última votação na Assembleia Legislativa contaram com a minha incômoda presença cobrando celeridade. Não consegui cumprir o objetivo de comemorar a sua aprovação no Dia do Folclore, mas exatamente um mês depois o vice-governador Luís Abílio de Souza Neto publicou a Lei nº 6.513, de 22 de setembro de 2004.
No início do ano seguinte (precisava de orçamento), o Conselho Estadual de Cultura escolheu, excepcionalmente, os nove primeiros mestres, que passaram a receber R$ 500 mensais (o salário mínimo da época era R$ 240,00). A norma previa a escolha de três mestres por ano até o máximo de 30.
Dias depois, durante a comemoração dos aniversariantes do mês na Secult, com a presença de servidores e mestres dos folguedos, me aproximei de uma roda onde Manoel Venâncio de Amorim, o Mestre Venâncio, pontificava com o seu inseparável pandeiro.
Venâncio nunca soube que foi ele quem me inspirou a propor a Lei dos Mestres. Saía das conversas com aquele mestre do Guerreiro refletindo sobre a grandeza humana. Um homem do povo vivendo com inúmeras limitações materiais, mas que sabia rir como poucos. Seu bom humor era uma aula de como se viver de bem com o mundo e com as pessoas, mesmo nas adversidades.
E naquela manhã, lá estava ele exaltando as suas qualidades nos cânticos improvisados do Guerreiro. Aproximei-me, confesso, esperando usufruir dos seus sinceros sorrisos. Mas ele estava respondendo a alguém que havia duvidado da sua arte.
Resolvi entrar na conversa jogando mais lenha na fogueira:
— Venâncio, você só tem a fama de bom improvisador, mas passa a noite em casa decorando os motes.
Pronto. Tinha mexido com ele além da conta. Como era esperado, me desafiou a apresentar um mote diferente de tudo que ele poderia ter decorado.
— Posso mesmo? Então lá vai: topei no paralelepípedo e caí no purgatório!
E lá estava ele na maior das risadas. Mal conseguiu dizer:
— E isso aí é mote, homem! Você quer me enrolar! Como diabos alguém consegue dizer um negócio desses?
Ele tinha razão; não era mote. Era somente um artifício para vê-lo alegre.
O capelense Manoel Venâncio de Amorim estava entre os nove primeiros registrados como Patrimônio Vivo do Estado de Alagoas (Resolução nº 01/2005, Livro de Tombo nº 05, à folha 07 verso, a partir de 13 de maio de 2005).
Lamentavelmente, pouco usufruiu desse reconhecimento. Faleceu no dia 28 de fevereiro de 2008. Tinha 84 anos de idade.