Os três macaquinhos da Madeleine
Miguel Gustavo de Paiva Torres
No início do século, janeiro de 2000, eu estava instalado e deslumbrado com a beleza, a história e o aconchego do meu novo posto diplomático: Praga.
As dificuldades da comunicação em língua checa eram amenizadas pela surpreendente facilidade em encontrar falantes da língua inglesa, clubes de vídeos e cinemas, jornais e diversão.
A cidade tinha cerca de 30 mil norte-americanos vivendo e trabalhando por lá. Uma ocupação cultural exuberante na isolada, sombria e falecida sociedade comunista local. Um ano antes, em 1999, a República Checa e a Polônia tinham sido incorporadas à OTAN.
Em duas décadas a aliança militar ocidental acomodou quase todos os países da Europa Central e Oriental que estavam incorporados ao sistema político e militar comandado pela extinta União Soviética.
A cortina de ferro militar foi substituída por uma cortina de veludo político-diplomática tecida por discursos liberais, penetração cultural e retórica libertária.
Rapidamente cercou a fronteira ocidental da nova Federação Russa, com a inclusão da Romênia, Hungria, Eslováquia e dos idílicos países bálticos.
Em 2017 incorporaram a minúscula Montenegro. Em 2014 já haviam iniciado parceria formal com Geórgia e Ucrânia, oferecendo treinamentos militares e disponibilizando armas, quando Putin invadiu e ocupou a Criméia.
Em setembro de 2000, durante a reunião anual do FMI/BIRD, quase 20 mil pessoas provocaram caos e quebradeira generalizada em Praga em protesto contra a globalização econômica e o aumento das desigualdades sociais.
A Rádio Free Europe (Europa Livre), que fazia suas transmissões a partir de Praga para o Leste Europeu, foi ocupada. Instituições e políticos checos começaram a receber pacotes com explosivos e antraz. A cidade passou um bom tempo ocupada por militares em seus tanques de guerra. Eu estava lá.
Ainda em 2000, o presidente Clinton, acompanhado por sua combativa secretária de Estado, Madeleine Albright, realizou o primeiro encontro de cúpula dos Estados Unidos com a Rússia, na gestão do recém-eleito presidente Vladimir Putin.
Como era do seu hábito, Madeleine usava um broche com significado diplomático. Nessa ocasião eram três macaquinhos, fechando os olhos, ouvidos e boca.
Putin perguntou à menina checa refugiada da segunda guerra mundial, agora chanceler dos Estados Unidos, qual era o significado do seu broche. Madeleine referiu-se à carnificina e destruição total da capital da Chechênia, Grozny, comandada do Kremlin por Putin e respondeu: “Não vejo o mal, não ouço o mal e não falo o mal”.
Não sei se alguém sabe o que Putin teria respondido. Teria ficado calado ou teria se referido aos bombardeios norte-americanos no Camboja, no Laos, no Vietnam, em Hiroshima ou Nagasaki.
Talvez o silêncio tenha sido a resposta mais provável. Foram 20 anos de silêncio até testar, no campo real, o seu míssil supersônico, impossível de ser detectado e abatido por radares, disparado na direção das cabeças de inocentes soldados e voluntários ucranianos estilhaçados em uma caserna. 200 mortos de uma só vez.
Não sei qual broche poderia representar a atual carnificina na Ucrânia e a varredura da cidade de Mariupol do mapa europeu.
Uma coisa parece certa. O mapa geopolítico do mundo vai ser alterado. A ONU, propriedade dos vencedores da segunda guerra mundial, não tem mais significado e sua efetividade é zero. Não há mais lei. Está claro que manda quem tiver a arma mais poderosa e não tiver medo de morrer. Não adianta reclamar, chorar, discursar. Mandarão os mais fortes daqui por diante. São os sinais do novo mundo, globalizado a ferro e fogo.