Zé Cotó e o barbeiro de Caruaru

Ernane Santana

Em dezembro de 1962, viajando em excursão com colegas ginasianos, e alguns professores, com destino a Salvador, na Bahia, passamos por Paulo Afonso e ali obtivemos autorização para visitarmos a Casa de Comando da fantástica usina hidroelétrica inaugurada em 15 de janeiro de 1955 pelo então presidente Café Filho, que assumira o governo do país após o suicídio de Getúlio Vargas, ocorrido no dia 24 de agosto de 1954.

Foi a partir do represamento das águas do Rio São Francisco na cachoeira de Paulo Afonso, com um desnível de 80 metros, que a CHESF (Companhia Hidroelétrica do São Francisco) construiu essa maravilhosa usina de produção de energia elétrica.

Depois da inauguração da Usina Paulo Afonso, muitas cidades nordestinas, que utilizavam da energia elétrica produzida por geradores a óleo diesel ou por pequenas usinas em barragens, passaram a receber a energia ali produzida. Com isso, os antigos rádios e radiolas à base de pilhas alcalinas (corrente contínua) começaram a ser trocados pelos novos modelos produzidos pela marca ABC — “A Voz de Ouro” do Nordeste — agora funcionando com corrente alternada.

As transformações ocorreram numa velocidade impressionante. A iluminação pública, os cinemas, televisores, sorveterias, serrarias e até os refrigeradores a querosene passaram a utilizar energia dessa nova fonte, provocando uma verdadeira revolução nos costumes.

As distribuidoras de eletrodomésticos começaram a contratar novos caixeiros-viajantes para propagandear e vender seus modernos utensílios. José Aparecido foi um desses profissionais. Soube da sua existência entre 1960 e 1962, quando eu ainda estudava em Palmares, Pernambuco.

Zé Cotó, como era mais conhecido por não possuir o antebraço esquerdo, teve um começo difícil como representante dos produtos ABC para os estados de Alagoas, Pernambuco e Paraíba.

Após um breve treinamento se largou estrada a fora e 45 dias depois numa quinta-feira à tarde, chegou a Caruaru doido por um banho de asseio, uma boa comida, uma cama para se deitar e, mais necessitado ainda, de um barbeiro para derrubar sua cabeleira de “Sansão” e a barba de “Profeta”. Pretendia fazer uma das melhores “praças” do Nordeste apresentando-se bem vestido, com a barba e cabelos cortados.

Hospedou-se num pequeno hotel situado no centro da cidade e perguntou ao hoteleiro onde poderia encontrar um bom barbeiro para modificar o seu visual. O dono da hospedaria chamou um garoto que estava sentado na calçada e disse:

— Menino, mostre a esse homem como se chega até ao salão do barbeiro João Branco.

Atendendo ao chamado, o menino falou para Zé Cotó:

— O senhor segue em frente no rumo da venta, lá adiante dobre o braço direito, ande uns cem metros e dobre o braço esquerdo, e logo, logo, na esquina, o senhor vai avistar uma casinha pintada de branco e aí o senhor vai encontrar o barbeiro João Branco.

Com muita dificuldade Zé Cotó conseguiu chegar ao lugar. Lá encontrou um mulato sentado num tamborete, todo suado, nu da cintura para cima, com uma faca na mão cortando talos de bambu para consertar uma gaiola de passarinho caída ao chão.

— É o senhor o barbeiro João Branco? — A resposta veio imediata:

— Tá falando cum ele!”

— Quero que o senhor corte meu cabelo e minha barba também.

— Sente na cadeira qui já vou começá o serviço —, ordenou o barbeiro.

João Branco abriu a gaveta de um velho armário e de lá retirou avental e toalha que ainda guardavam lembranças de quando foram da cor branca. Após vestir o avental encardido, balançou a toalha no “oco” do mundo e a amarrou no pescoço de Zé Cotó.

Com a máquina de cortar cabelo na mão, perguntou por perguntar:

— Qualé o tipo de corte de cabelo que senhô deseja? Militar, Cornuaite, Jaquideme ou máquina zero mesmo?

Zé Cotó mal tinha iniciado o processo de pensamento para escolher o corte e o barbeiro já estava tosquiando, sem nenhuma delicadeza, sua vasta cabeleira.

Poucos minutos depois iniciou o segundo ato “barbeiral”. Retirou de outra gaveta a velha navalha alemã da marca Solingen e ao lado colocou uma pequena bacia de ágata, pincel de barbear e um pedaço de sabão Jabacó. De uma quartinha despejou um pouco de água na vasilha, cortou algumas raspas do sabão e começou a fazer espuma com o pincel.

Concluiu o ritual, amolando a navalha numa tira de couro de boi dependurada ao lado do espelho. Foi nesse instante que Zé Cotó percebeu os tremores nas mãos do barbeiro.

— Feche os óios e a boca qui é pra mode num arrecramá adepois. — alertou.

Branco de medo, e de espuma, ao representante dos rádios ABC restou somente invocar o Padre Cícero em sua salvação e ficou esperando que o pior lhe acontecesse.

Com a navalha na mão, o barbeiro marcou com os dedos polegar e mindinho o trajeto por onde iria começar o serviço. Respirou fundo e desceu com gosto o aço pelo rosto do freguês.

Com a dor, a vítima, digo, Zé Cotó abriu os olhos e viu no embaçado espelho que o sangue lhe escorria pela face. Tentou sair da cadeira, mas foi contido por uma mão forte em seu ombro:

— Não se avexe, não, tá quage terminando!

Ao ver a barbeiragem que havia feito, o distinto João Branco tentou puxar conversa para amenizar a situação:

— Eu acho qui sua pessoa não me é istranha. O senhô já fez barba aqui uma vez, né?

Aproveitando-se daquela pequena trégua, Zé Cotó deu um pulo da cadeira e falou alto:

— Não. Eu nunca estive aqui e nem cortei cabelo e nem barba em sua barbearia. Esse braço aqui eu perdi foi num acidente de trem!!!”

Largou a toalha no chão e disparou rua a fora com o rosto todo encharcado de sangue.

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