Para além dos Bolsonaros!
Sérgio Braga Vilas Boas
Nestes dias de empoderamento da burrice, de obstrução do diálogo, e de abjeta intolerância em que o lumpesinato moral e intelectual ocupa todos os espaços da sociedade, é praticamente impossível um debate sobre exatamente o que ocorre, e quais os antídotos que poderiam ser aplicados, ou pelo menos tentados.
Jeferson Miola, em recente texto (A contrarrevolução fascista do bolsonarismo) pegou exatamente o fio da meada e definiu o quadro em um parágrafo apenas:
“Contraditoriamente, Bolsonaro consegue conter e canalizar para dentro da própria ordem capitalista e neoliberal a revolta e o mal-estar da população com o fracasso de décadas do neoliberalismo e, ainda assim, ele ainda consegue se apresentar como antissistema, num processo que bloqueia a viabilização de alternativas antineoliberais e aprofunda a ditadura do capital financeiro.”
Permito-me discordar apenas no tocante à dimensão da coisa. Na verdade tudo isso é um estratagema, não do Bolsonaro, mas da extrema direita internacional, alimentado pelas oligarquias neoliberais para fazer exatamente o que faz: subverter qualquer lógica formal que possa haver em qualquer raciocínio são acerca dos males que afligem o mundo, cuja base é exatamente o rastro de destruição que a mundialização (ou globalização) do capital e a mundialização financeira imprimiram ao planeta.
É a velha questão da grande contradição intrínseca ao capitalismo acerca dos inconciliáveis interesses entre aqueles que detém o capital (cada vez mais concentrado e excludente) e aqueles que buscam sobreviver vendendo sua mão de obra do jeito que podem.
Enquanto falávamos sobre como o neoliberalismo destruía o mundo, a extrema direita conseguiu capitalizar o mal-estar geral contra essa mesma destruição, a depender do lugar, numa determinada coisa visível, palpável, que está do seu lado, e apontou para ela todos os dedos da culpa, assim como fizeram os nazistas no passado.
Um dia foram os judeus. Hoje são os ambientalistas; os defensores dos direitos humanos; o movimento LGBTQIA+; etc. Para eles é preciso destruir toda uma gama cultural de esquerda que retira e suprime a liberdade do homem e o oprime, e que vem subjugando o mundo.
O “América First” de Donald Trump aponta que a globalização é um fenômeno de esquerda, que transfere empregos dos americanos para a Ásia, e que oprime o “american way of life”, um padrão de comportamento liberal fóssil em que a desconfiança do Estado é condição “sine qua non” para sua e existência.
Na Europa, de forma mais eficaz, coube à extrema direita questionar a globalização que destrói nos homens o orgulho de ser francês, alemão, sérvio, espanhol, etc. Que retira a capacidade das nações de decidir sobre seus próprios interesses. Propõem como solução a selvageria.
A extrema direita insuflou um comportamento ideológico, no sentido crasso do conceito, multiplicado à enésima potência pelas redes sociais, que por si só cria um ambiente virtual em que se escapa da realidade objetiva e se cria um mundo à sua imagem e semelhança, uma espécie de bezerro de ouro para muitos.
Então, o defensor do ideal cristão e da família não é o Haddad, casado há 30 anos com a mesma mulher, pacato, professor, católico praticante. Quem cumpre esse papel é um homem que defende a tortura, que propaga intolerância e ódio, e que já foi casado quatro vezes, com ex-mulheres de comportamento moral duvidoso assim como o dele. É um mundo paralelo que tem seu próprio deus, ideologia pura sem qualquer conexão com a realidade nua e crua. Poderia aqui preencher “n” laudas com exemplos do tipo “eu vi cabelo de cavalo virar cobra”!
Custei a crer, mas a mim me parece que a oligarquia global nos apresenta como solução à ordem ainda estabelecida, outra ordem pior, mais violenta, que faz parecer a atual uma sobremesa de mamão com mel.
Aí reside a minha preocupação. Entendo que cada passo deve ser dado por sua vez. A tarefa imediata é recuperar a democracia e minimamente as instituições. Todavia, nós à esquerda que proposta de mundo temos a oferecer depois de vencido o caos?