O menino da Avenida da Paz
Miguel Gustavo de Paiva Torres
Bernardo Mendonça tinha dois desejos, viver pelo menos até os 70 anos e fazer uma última viagem afetiva à sua terra original, para rever a Avenida da Paz da sua infância. Era uma memória colada para a eternidade em sua mente e coração.
Aquela praia foi, de longe, a mais bela de Maceió e, com conhecimento de causa, do mundo. A conheci ainda virgem, com suas amendoeiras, seu lindo coreto e a sua aldeia original de pescadores. Tinha suas areias apenas manchada, naqueles idos do século passado, por uma leve língua de esgoto trazido dos bairros altos da cidade pelo leito do antigo Riacho Salgadinho.
Era essa praia que Bernardo Mendonça queria rever, como seu desejo final antes de partir aos 67 anos.
Combinamos que faríamos juntos essa peregrinação ao princípio do mundo: a Praia da Avenida, com seus antigos casarões e casas simples de portas e janelas, com profundidade de quintais alimentados por mangas, cocos, pitangas e amor.
A primeira vez que tivemos uma conversa a dois foi na praia da Barra de São Miguel, então isolada, com seus moradores, sua prefeita e sua linda filha Rosinha, minha colega de colégio e amiga, um barraco a beira-mar para beber e comer mariscos frescos, com poucas mesas e um tronco de coqueiro atravessado para que os turistas pioneiros pudessem sentar, conversar e tirar suas fotos com a Kodak, à moda antiga.
Com o seu impagável sorriso cético, olhos brilhantes e visão profunda, Bernardo me disse: — Olhe, olhe sem parar e grave. Grave para sempre. Vai acabar, vai desaparecer. Vai ser uma cidade grande, sem esgoto, com mar poluído pelas pessoas.
Eu tinha 20 anos, ele 24. Um vencedor nordestino e mineiro entrelaçado pelo amor de pai alagoano e mãe mineira, no meio brutal da concorrência do jornalismo no Rio de Janeiro e São Paulo. Naqueles tempos jornais e revistas e, depois, televisão, formavam o que se chama opinião pública ou, como dizia Bernardo, opinião dos donos do papel e da tinta das impressoras rotativas. Ainda menino de 24 anos já estava há algum tempo na Editora Abril, chefiando a seção de educação na revista Veja em São Paulo.
Amava o Rio de Janeiro quase na mesma medida em que amava a Avenida da Paz. Morador da Gávea, fui seu companheiro de longas noitadas na Pizzaria Guanabara onde sempre me recomendava não comer pão com cerveja para não inchar e estourar.
Não aguentou a saudade do Rio de Janeiro e deixou São Paulo. Foi trabalhar em O Jornal, depois editor no Opinião e de alguns outros periódicos, sempre lutando com a pena e a inteligência contra a ditadura militar. Respeitadíssimo por todos os grandes da grande imprensa. Uma fera com cérebro de escritor e poeta.
Um dos mais importantes poetas contemporâneos do Brasil, que parou em Drummond, Jorge de Lima e Ferreira Gullar. Brincava com a alma das letras, frases, pontuação e imaginação.
Depois de mais de 40 anos sem ver Bernardo, ainda antes de me aposentar em 2018, consegui encontrá-lo na internet em 2017 e fui convidado a ir visitá-lo e sua família no seu lindo refúgio no interior da mata atlântica na serra de Petrópolis.
A amizade verdadeira é tão forte quanto o amor verdadeiro. Aquela coisa: nunca estivemos separados. O fio invisível nos uniu pela eternidade. Também foi meu mestre, como meu pai, nos valores antigos de dignidade, honestidade, transparência e firmeza.
Que surpresa encontrar na biblioteca de Bernardo todos os livros de poesia vanguardista norte-americana que dei de presente para ele ao regressar do término do meu curso secundário nos Estados Unidos. Lá estava o Howl (Urro) de Ferlinghetti; a chuva poética de Cummings e tantos mais: foi uma surpresa e uma alegria.
Começou a procurar um livro em sua biblioteca e achou o que queria: o livro com textos do Carlito Lima, grande escritor e agitador cultural das Alagoas, e de outros antigos moradores da Avenida da Paz, nos tempos de paz e alegria. O livro foi organizado pelo irmão do Carlito, Américo José Peixoto Lima (Lelé).
Lá estavam as memórias e fotografias do seu tempo de infância, do lugar que pretendia rever como último desejo em vida. Deu-me o livro e disse: – Leia e amanhã a gente conversa. Li e me vi regressando com ele à mais linda praia do mundo, seu casario e sua gente maravilhosa. — Nós vamos lá juntos, prometi.
Não deu tempo. Poucos meses, dois ou três, perto do momento da viagem para Maceió, Bernardo faleceu. Com seu coração partiu a praia, o mar azul e verde, com alma transparente, viajou para sempre o menino da Avenida da Paz.