Magalhães Pinto e o blefe de golpe militar contra Tancredo Neves
Edberto Ticianeli
Foto principal de Geraldo Guimarães – ESTADÃO CONTEÚDO
“Esperteza, quando é muita, come o dono”. Tancredo Neves.
Nos jogos, nas guerras e na política não se estranha a utilização do blefe. Ao contrário, é empregado largamente. Mas na medida certa para o feitiço não virar contra o feiticeiro e revelar que quem o utiliza repetitivamente quer esconder suas debilidades.
Levanto essa questão por constatar que nas últimas semanas o presidente Bolsonaro vem ameaçando virar a mesa e impedir as eleições de 2022 dizendo não confiar nas urnas eletrônicas.
Ele já usou esse recurso intimidatório por várias vezes. O primeiro deles, se não me falha a memória, foi ameaçar o STF com o envio de um cabo e de soldado para fechá-lo.
E assim, blefe após blefe, o presidente vai revelando que não tem bala alguma na agulha e que não passa de um fraco jogador de truco.
Quem consegue ler a debilidade do adversário nos seus blefes consecutivos, tira deles o melhor proveito. Um ás nesse jogo foi Tancredo Neves.
Foi lembrando dessa sua habilidade que encontrei certo paralelismo entre a situação atual e os acontecimentos que antecederam a eleição no Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985.
Diretas Já!
A derrota da Emenda Dante de Oliveira na madrugada de 26 de abril de 1984 — conseguiu 298 votos mas precisava de 320 — sepultou de vez as eleições diretas para a sucessão do general João Figueiredo e acelerou as articulações para a escolha dos candidatos que disputariam os votos do Colégio Eleitoral, naquela que seria a última eleição indireta para a presidência da República.
No PDS, partido da ditadura militar, surgiram alguns nomes. O principal deles foi o do ex-governador de São Paulo, Paulo Salim Maluf. Outra candidatura importante foi a do ministro do Interior Mário Andreazza.
Maluf ganhou força no partido e afugentou algumas lideranças, que lideradas por José Sarney migraram para o embrião de um novo partido, a Frente Liberal. Na convecção, Maluf derrotou Andreazza e foi para o Colégio Eleitoral.
Do outro lado, o governador de Minas Gerais, Tancredo Neves (PMDB), surgiu como o candidato da oposição, que tinham crescido exponencialmente nas ruas em campanha pelas Diretas Já! Essa “Aliança Democrática” levou Tancredo ao Colégio Eleitoral, tendo como vice José Sarney, que havia se filiado ao PMDB em agosto de 1984 para ser o vice.
Origem do blefe
Em março de 1984, quando a campanha das Diretas Já! empolgavam as ruas, o deputado federal por Minas Gerais, Magalhães Pinto, passou a defender um “pacto nacional de transição institucional” para a sucessão do general Figueiredo sob o argumento que uma mudança abrupta poderia não ser de agrado dos militares.
Matreiramente, dizia aceitar até votar em Tancredo Neves, seu principal e histórico adversário em Minas Gerais, para evitar as eleições diretas imediatas. Queria eleições diretas somente em 1986. Até lá, o mandato do general João Figueiredo seria prorrogado.
Magalhães Pinto queria mesmo era evitar as eleições no Colégio Eleitoral. Temia a vitória de Tancredo Neves diante de um PDS enfraquecido e dominado por Paulo Maluf e seus aliados. Mas se tivesse que ter eleições indiretas, o candidato da Ditadura deveria ser Aureliano Chaves.
Para viabilizar esse projeto, Magalhães Pinto sabia que tinha que tirar alguém de peso da oposição. Passou a trabalhar então para convencer o próprio Tancredo que essa era a melhor solução e que ele deveria ser o vice de Aureliano Chaves.
Sem sucesso, propôs o mesmo cargo para Sarney. Não conseguiu nada e a candidatura do também mineiro Aureliano Chaves perdia força dia após dia.
Em julho de 1984, cansado de esperar apoio dos militares, o vice-presidente da República rompeu com o general João Figueiredo, retirou a sua candidatura e se jogou na articulação para viabilizar o que passou a ser chamado de Aliança de Minas, uma construção política que resultaria no apoio a Tancredo.
No início de agosto as convenções partidárias das oposições confirmaram a chapa Tancredo Neves/José Sarney. Para alguns analistas era como se houvesse sido declarada uma guerra contra Figueiredo.
Tancredo Neves, que sabia de tudo de política e mais um pouco, inclusive que o general Ernesto Geisel não criaria obstáculos para a sua caminhada, reafirmava publicamente que a sua candidatura era para valer. “Ninguém chega ao Rubicão para pescar”, fraseava.
Enquanto isso, no PDS, Paulo Maluf derrotava Andreazza e já estava também em campanha aberta, com o apoio e engajamento do general Figueiredo.
Surge o blefe
Quem primeiro fez eco às insinuações de Magalhães Pinto sobre a possibilidade de um golpe militar foi o senador Amaral Peixoto (PDS-RJ), que no final de agosto advertia pelos jornais que cabia a Tancredo Neves e a Paulo Maluf evitarem uma crise institucional que poderia desaguar num golpe militar.
Magalhães Pinto se dizia um “homem da Revolução” para justificar não ter ainda optado por Maluf ou por Tancredo. Afirmava que estava com dificuldade “em ir para o lado daqueles que se opuseram e se opõem aos ideais revolucionários”.
Avaliava ainda que nenhum dos dois candidatos teria condições de governar com tranquilidade e que a instável formação da frente tancredista poderia produzir, depois da posse, “o desfecho que se procura evitar antes da posse” (Jornal do Brasil de 1º de agosto de 1984).
Começava o blefe para valer. Tancredo Neves entendia que a bravata, “se as oposições ganharem, haverá golpe!”, deveria ser ouvida como, “é preciso amedrontar todo mundo para impedir a vitória da oposição!”.
Magalhães Pinto e os militares do governo não tinham dúvidas sobre a vitória de Tancredo: “Ganha até o Cacareco, se estiver concorrendo pelas oposições”, disse o banqueiro mineiro em uma entrevista. Cacareco foi um rinoceronte (fêmea) que nas eleições municipais de outubro de 1959 da cidade de São Paulo recebeu cerca de 100 mil votos para vereador.
Desesperado, o general Figueiredo tentava viabilizar Maluf, enquanto isso Magalhães Pinto se esforçava para reaproximar Aureliano Chaves do presidente e assim afastá-lo de Tancredo Neves.
Nada disso funcionava e a cada vez mais a vitória de Tancredo Neves era dada como certa.
Magalhães Pinto resolveu então crescer o blefe e passou a ter contatos com setores militares para que as notícias sobre suas articulações ganhassem a imprensa, como de fato aconteceu.
No dia 29 de outubro reuniu-se com os generais ministros Walter Pires, do Exército, e Octávio Medeiros, do SNI, e propôs a retirada da candidatura do PDS, a desestabilização da Aliança Democrática e a “limpeza do terreno” para uma solução nova do impasse sucessório. Uma solução de força, como ele havia tramado em 1964 pela UDN.
Enterro do blefe
Tancredo Neves, calejado nesse jogo e sabendo que tinha o sinal verde do general Ernesto Geisel, sepultou o blefe com uma das suas célebres frases: “A cabeça do Magalhães funciona como um terreno baldio, onde há sempre alguém atirando alguma sujeira”.
O blefe era tão distante da realidade que no dia 18 de dezembro Magalhães Pinto anunciou o apoio a Tancredo Neves.
Três dias depois o Jornal do Brasil publicou editorial assinado pelo diretor regional do veículo em Minas, Acílio Lara Resende, com o seguinte título: “Está selada a sorte”. Anunciava antecipadamente a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, algo que aconteceu três semanas depois, no dia 15 de janeiro de 1985.
O senador Amaral Peixoto, que não votou nos candidatos, tem lugar de destaque nesse escrito por confirmar certos paralelismos ao definir o “malufismo”. Para ele era um grupo “formado por alguns políticos inexperientes e por empresários, que se armou em torno de Maluf, praticando uma política agressiva e contrária às normas habituais e éticas de uma atividade que tem as suas regras”. (Jornal do Brasil de 30 de dezembro de 1984).
Paulo Maluf, o candidato dos militares golpistas em 1985, cumpre prisão domiciliar. Está preso desde 2017, após ser condenado a sete anos e nove meses de prisão pelo crime de lavagem de dinheiro. Cumpre também em prisão domiciliar, desde maio de 2018, uma segunda pena de dois anos e nove meses por caixa dois.
Bela narrativa sobre a mais importante História política do Btasil. Só que merece uma corrigenda na parte em que diz que Bolsonaro faz isso “por não confiar nas urnas eletrônicas”, já que ele confia tanto que, ao saber que as pesquisas o coloca como derrotado por antecipação, passou a impor a volta de apuração manual de votos, sistema que permitia fraudar a contagem e eleger políticos que nunca foram eleitos.