Morte, vida, pizzas e vinhos

Edberto Ticianeli
jornalista

Em junho de 1990, eu estava em São Paulo para mais um curso organizado pelo PCdoB, uma boa prática abandonada pelos partidos de esquerda. O lugar das aulas e de hospedagem era frio, muito frio. Ficamos num sítio em São Lourenço da Serra. Era tão frio que ao amanhecer a água de uma piscina abandonada apresentava uma “casquinha” de gelo.

Éramos uns trinta e poucos dirigentes partidários, sôfregos por conhecimento e dispostos a enfrentar qualquer dificuldade para aprofundarmos os nossos saberes sobre a política. O curso teve a duração de 30 dias e, do ponto de vista metodológico, foi um teste de sobrevivência, com aulas e atividades pela manhã, tarde e noite. O descanso era aos domingos, mas, pelas dificuldades de transporte, poucos se atreviam a sair de lá.

O pior era o serviço gastronômico. Como a cozinheira desistiu do trabalho logo nos primeiros dias, um destacado dirigente partidário resolveu que poderíamos enfrentar essa ausência utilizando a mão de obra dos participantes. Um desastre. Juro que em várias oportunidades ouvi o carcarejo do frango ao ser atingido por garfos ávidos durante as refeições.

No último dia, quando deixamos o lugar, vários dos alunos já haviam perdido alguns quilos após os intensos treinamentos em “sobrevivência no sítio”. Saímos num domingo em ônibus fretado e fomos para a famosa república vermelha da Rua do Bexiga. No dia seguinte voltaríamos para os nossos estados.

Entre as várias amizades surgidas durante o curso, tive o prazer de me aproximar do Roberto (preservo o verdadeiro nome) e do Quintão, um companheiro do Rio de Janeiro, que lutava tenazmente para manter o peso, fazendo corridas diárias nas madrugadas, quando a temperatura beirava 0° graus. Roberto tinha um câncer de estômago e resistia bravamente aos males da doença, após ter sido enviado para um tratamento na Albânia sem melhores resultados.

Na capital paulista, após nos acomodarmos na República do Bexiga, resolvemos que naquela noite mataríamos a fome e a sede acumuladas durante um mês. Com essa missão claramente definida, fomos para uma das famosas pizzarias da Rua 13 de Maio.

Lembro que naquela noite devoramos um verdadeiro castelo de pizzas na nobre companhia de um barril de vinho. Recordo-me também que nos preocupávamos com o Roberto, que tinha uma dieta muito restrita. Ele percebeu que estávamos atentos a isso e nos disse que naquela noite abriria mão dela.

Já era madrugada quando deixamos a pizzaria para voltarmos à Rua do Bexiga. Em meio à caminhada, passamos a conversar sobre a vida e a morte, um tema sempre presente em quem teve militância partidária com algum risco de vida.

Depois de algumas divagações sobre as antigas ações clandestinas e a constatação que a Ditadura Militar causou profundos danos às organizações de esquerda, Roberto nos surpreendeu, mudando de assunto e afirmando saber que não duraria muito, mas que estava preparado para deixar a vida. Ficamos em silêncio, sem saber o que dizer. Pausadamente, ele continuou a discorrer sobre sua visão de mundo, carregada de reconhecimento pelo papel histórico do ser humano. Ouvi aquelas palavras impactado. Sua abordagem de um tema tabu era desconcertante para nós e, acredito, para qualquer um.

Continuei a caminhar, agora de cabeça baixa, como que estivesse anotando no cérebro aquele curso intensivo de humanismo, de amor à vida. Muito diferente do que tínhamos aprendido sobre a polarização entre Adam Smith e Karl Marx.

Troquei olhares com o Quintão e percebi que ele também estava emocionado. Consegui dizer somente algumas palavras de encorajamento, temendo que meus sentimentos, exacerbados pelo álcool, destoassem da altivez apresentada pelo Roberto.

Meses depois, soube que ele havia partido. Para minha surpresa, a tristeza, que normalmente nos toma nesses momentos, foi passageira. As lembranças daquela madrugada em São Paulo eram mais fortes. Entendi então que uma pessoa como o Roberto não precisava de tristeza alguma em sua homenagem. Alguém que se alçou àquela condição humana fazia jus a outros sentimentos.

Naquele dia, ao chegar em casa, silenciosamente ergui um copo de cachaça e brindei à vida e ao bravo lutador que havia acabado de partir. É assim que ainda hoje faço. Evito que a notícia sobre a morte de alguém se associe ao triste sentimento da expiação. Aprendi isso numa madrugada fria em São Paulo.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

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