Imagine: Paris está em chamas
Miguel Gustavo de Paiva Torres
Foi um manifesto político, cultural, artístico: um happening civilizacional. Quando Aya Nakamura leva as mãos à vagina com sua dança de fogo e sexo lembra ao mundo inteiro que a franco-maliana está se referindo, também, a todas as meninas africanas que tiveram o clitóris extirpado pela lâmina da pedra lascada que continua a cortar clitóris na África.
As tradições: mulher não foi feita para gozar. Foi feita para procriar, obedecer e levar chibatadas dos homens, que, na calada da noite, buscam o prazer entre “fréres”, na floresta ou na montanha.
Imagine um piano em chamas, descendo e subindo o Rio Sena, chorando e gritando pela paz. Eu não sou o único, disse Lennon. Eu também John. Somos jovens e temos o direito à vida e o dever da igualdade, da fraternidade e, sobretudo, da liberdade. Assim como Marianne iremos para a frente de batalha com a cabeça de Maria Antonieta rolando em praça pública.
Mesmo que a extrema direita e a extrema esquerda não gostem de Céline Dion cantando, no triunfo da vida sobre a morte dos comuns dos mortais, o Hino ao Amor, de Edith Piaf, o amor estava sim ali, em Paris, molhada pela chuva intensa que apagava os tiros de canhões de Napoleão; os mísseis de Putin, a tempestade de bombas americanas, no deserto e no mar.
O mar de sangue em que somos obrigados a navegar, dia após dia, nas telas planas dos nossos celulares, computadores e televisões.
Muitos e muitas, que nunca leram um livro, não vão entender o significado, para nossas vidas ocidentais, da Biblioteca Nacional de Paris e das estátuas douradas de algumas das mulheres que fizeram da pluma e das letras a revolução necessária a todas as reformas ainda não feitas em nosso mundo impresso em terceira dimensão na Casa da Moeda. Onde viveu o Avarento de Moliére.
Saindo das águas do Sena, algumas foram reverenciadas, acredito que em nome de todas, porque faltaram dezenas de líderes dos grandes e pequenos salões recreativos e culturais da Cidade Luz, reproduzidos em todo o mundo ocidental por mulheres de fibra e pensamento, seja em Bogotá, Buenos Aires, São Paulo, Santiago, Maceió ou Recife.
Foi o farol do iluminismo gestado na Biblioteca Nacional de Paris que iluminou o mar da Europa, América do Sul, Caribe, — a África independente —, e, até Catarina, a Grande, da Rússia, amiga de Voltaire, reverenciou um possível futuro de progresso e civilização.
Foram os seus tesouros de conhecimento e pensamento que navegaram todas as águas e que, ontem, na abertura dos Jogos Olímpicos de Paris, chegaram em festa, alegria e liberdade, navegando em um novo tempo, a ser desbravado pelas jovens gerações dos cinco continentes, representados na bandeira olímpica pela diversidade do gênero humano, este mesmo que dizia 300 anos atrás, penso, logo existo.
Logo, somos iguais, digo eu, cada um do seu jeito. Tanto faz ser Poodle ou Pastor Alemão; somos todos cachorros, inclusive nós — os abandonados; sem casa e sem donos, vira-latas felizes lambendo suas crias, no gelo do ártico ou no sol dos trópicos.
Certo estavam os Titãs quando diziam que não queremos só comida e dinheiro. Queremos o sol na pele, a música, a paz e o amor, sobretudo o amor. Paris, eterna Paris.