O Fantasma da Casa Navio
Por Miguel Gustavo de Paiva Torres
Recife foi um pedaço de infância e adolescência. Quando atravessamos as pontes que ligam o imaginário ao real. O Boi Voador de Maurício de Nassau, invenção astuciosa para cobrar pedágio e pagar os custos da ponte de madeira sobre a antiga Mauricéia nordestina no século XVII. A fábrica de cerâmica dos Brennand levantando a futura Oficina e o museu sonho dos meninos Francisco e Ricardo.
A Casa Navio de Adelmar da Costa Carvalho materializou-se na ainda primitiva praia da Boa Viagem. Navio que nos levaria à travessia para os tempos modernos, feito de concreto, aço, dinheiro; e do sangue e suor dos caboclos, mulatos e negros que também foram crianças e sonharam com a possível travessia para um mundo de fantasia e alegrias.
Adelmar foi um homem do bem. Um personagem de sua própria saga, inventada e concretizada na popa e na proa do Navio que povoou o seu imaginário de aventuras e grandeza humana. Transformou a cidade e imprimiu esperança nos mais pobres e humildes. Foi um ser coletivo. Foi ele mesmo parte de Pernambuco e do Brasil.
Aprendeu a trabalhar no comércio com o seu pai em uma pequena loja de louças no centro antigo da cidade. Trabalhou duro e, com o passar dos anos da primeira metade do século XX, chegou a ser um dos empresários mais rico e poderoso de Pernambuco.
O que fez com o excedente do seu dinheiro? Passou a ser uma caixa beneficente da cidade e do estado. Construiu e doou o estádio do Sport Clube de Pernambuco; fundou a Sociedade de Combate ao Câncer; construiu os prédios modernistas da Avenida Guararapes; construiu e ofertou a Capela do Derby e doou fortunas à Arquidiocese do Recife e de Olinda. Participou da fundação e da expansão de quase todos os clubes sociais do Recife e muito mais.
Inaugurou uma relação humanizada com os seus funcionários e empregados. Ajudando a todos em um momento da história em que ainda não existiam leis trabalhistas. Adotou uma forma de trabalho horizontalizada em seu conglomerado de empresas. Era o conceito do pertencimento de todos a uma causa comum. Deputado federal pelo antigo PSD e depois MDB, foi cassado em 1969 pelo regime militar.
Lembro bem a primeira vez em que vi a Casa Navio construída por Adelmar na antiga Avenida Beira Mar, hoje Avenida Boa Viagem. Excitação. Foi o que senti. Excitação, surpresa e alegria. Acho que todas as crianças sentiam o mesmo com aquela aparição inusitada sobressaltando a mesmice de todas as mansões da burguesia endinheirada da cidade.
Coisa de louco ou de santo. Um santo louco trazendo os sonhos das viagens imaginárias para a sua amada cidade. Loucos e santos atraem outros loucos e santos. Por isso a Casa Navio foi o pouso preferido de Assis Chateaubriand e de Juscelino Kubitschek em suas vindas à cidade das pontes e da Casa Navio. A Metro-Goldwin-Mayer enviou uma equipe para filmar em detalhes a Casa, exibida em seus jornais cinematográficos no mundo inteiro.
O fantasma da Casa Navio ainda povoa o meu imaginário de viajante errante. Vive na minha memória sexagenária como um querido e antigo brinquedo da minha infância.
Foi demolida nos anos 70 para dar lugar aos imensos espigões que iriam cortar a luz do sol no final do século XX e neste acelerado e confuso século XXI.
As novas gerações nunca puderam sentir a excitação, a surpresa, a alegria e o voo imaginário das crianças dos anos 50 e dos anos 60, quando os ônibus elétricos importados dos países escandinavos deslizavam suaves e sem ruídos pelas ruas e avenidas de uma cidade que tinha o cheiro e o gosto do mar.