As luzes da cidade
Miguel Gustavo de Paiva Torres
Foi um momento de deslumbramento a visão primeira das luzes esmaecidas levemente amareladas de Maceió na noite escura, ao som do Samba Pa Ti de Carlos Santana. Nós já tínhamos bebido as cervejas Budweiser e John voltava de sua cabine com uma garrafa de Bourbon para a saideira da madrugada.
Era a minha última noite no navio. Por minhas mãos aquele pequeno grupo de amigos e amigas havia conhecido as mais lindas praias de Alagoas e participado das melhores festas de carnaval da cidade.
Noite alta no convés: o que eu tinha na minha frente era o casario novecentista, ainda intacto, da praia central da Avenida da Paz, onde construíram o primeiro grande edifício residencial da cidade na época, o São Carlos, prenunciando o futuro de demolições na cidade.
Samba Pa Ti de Carlos Santana
Madrugada alta eu tinha que desembarcar do navio antes da abertura do Porto, com a cumplicidade e proteção dos amigos americanos, todos jovens à serviço de enfermagem e manutenção do Navio Hospital Hope, ancorado no Porto de Maceió, em missão de cooperação internacional no Brasil para o estudo, pesquisa e tratamento de doenças tropicais. Corria o ano de 1973.
Em fevereiro de 1973, quando o Hope aportou em Maceió, tinha 19 anos, estudava Direito e era professor de língua inglesa em estabelecimentos de ensino em Maceió. Regressei dos Estados Unidos em agosto de 1971, após concluir o curso secundário. A administração do navio hospital fez um chamamento para tradutores voluntários que pudessem intermediar as conversas entre os profissionais americanos e pacientes internados.
Ganhei uma vaga e passei a atuar como tradutor na parte da tarde, a mais interessante para mim porque não prejudicava o meu curso na parte da manhã e se encerrava todos os dias exatamente às 17 horas e trinta minutos, com o sino que convidava a todos para o “happy hour” no bar restaurante do navio; momento diário de confraternização e de fuga do horror da miséria e doenças flutuando naquele navio branco.
Tive que estudar e aprender termos técnicos da Medicina em língua inglesa, conhecer os pacientes e acompanhar casos de doenças raras tropicais, das quais não sabia da existência no cinturão humano da pobreza que cercava a minha confortável e tão feliz bolha da classe média de Maceió; praticamente uma grande família alargada, privilegiada e alienada da realidade da ainda pequena periferia da capital alagoana, com pouco mais de trezentos mil habitantes, no início dos anos 70.
Um choque. Doenças raras, muitas desconhecidas, acometiam homens, mulheres e crianças deitados nas cabines de um hospital flutuante que tinha o cheiro da assepsia norte-americana.
Pessoas deformadas — monstruosamente deformadas por doenças tropicais raras —, que excitavam a curiosidade e o estudo científico dos médicos e médicas norte-americanos.
Confesso que tinha dificuldade em olhar de perto os exames minuciosos que eram feitos nos pacientes por médicos americanos juntamente com médicos e estudantes de medicina de Maceió.
Traduzia as perguntas e as respostas e depois tentava ficar olhando de lado contando os minutos para a chegada da hora do “happy hour”, momento de confraternização, música e alegria, no mar azul e branco da Avenida.
Era o contrapeso desses momentos diários que mitigava o peso da doença e da morte no Hope. Foi um ano de trabalho e aprendizado da realidade social da minha terra.
Na madrugada, sob as estrelas e sobre o mar, ao som do violão, vi pela última vez as luzes da cidade, da perspectiva do mar, antes de desembarcar.
Naquele momento, para mim, Maceió já não era apenas a minha cidade mágica à beira mar; das lindas meninas, bailes e belíssimas praias que frequentávamos, todos nós, da classe média da minha geração. Havia uma sombra. Uma sombra de deformações, doença e morte com a qual aprendi a conviver e que permaneceria na memória e navegaria para sempre nas águas profundas da minha alma.