A batalha da Rua Santo Antônio
Edberto Ticianeli
Após o golpe militar de 1964, quando esteve preso e perdeu todos os livros do pequeno Sebo da Rua 2 de Dezembro, Gilberto Soares Pinto montou uma lanchonete popular na esquina do quarteirão onde ficava o Cine Lux na Ponta Grossa, onde foi morar morar com a família em 1966.
Era um prédio antigo com sete portas estreitas e altas, que também abrigava precariamente a família. Além dos negócios, essa esquina também funcionava como um ponto de encontro de aposentados e, no final dos anos 70, de militantes de esquerda.
Sempre vigiado pelos agentes da polícia política, continuava a pregar os seus ideais libertários sem temer qualquer punição por isso.
Gilberto Soares Pinto era comunista e ateu. Condição que jamais deveria ser contestada por quem não estivesse disposto a entrar numa boa briga. Fazia questão de declarar as suas convicções políticas e filosóficas para todo mundo.
Os vizinhos evangélicos, sabendo que era uma pessoa boa, acharam que podiam convertê-lo. Sem resultados. Aliás, o efeito foi contrário: alguns quase que se filiaram ao Partido Comunista Brasileiro, o Partidão.
Nesse período inicial da Ditadura ainda aconteciam manifestações da sociedade civil em apoio aos militares e contra os comunistas. Eram comuns as famosas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, organizada pelos setores mais conservadores da classe média.
Uma das mais lembradas organizações desse segmento foi a Tradição, Família e Propriedade (TFP), um agrupamento fascista de base cristã.
Foi fundada em 1960 por Plínio Correia de Oliveira e seus militantes eram mobilizados para lutarem contra a desordem política. Misturavam política e religião. Professavam estranho fanatismo por uma seita que envolvia até a mãe do seu fundador.
Como não eram conhecidos em Alagoas, a presença deles na Ponta Grossa chamou a atenção de todos naquela manhã, principalmente por se anunciarem tocando bombos.
O cortejo vinham pela Rua Santo Antônio tendo à frente altos estandartes de cor vinho, empunhados por indivíduos com a cabeça raspada e trajando uma espécie de batina. Iam de porta em porta estendendo uma sacola e pedindo dinheiro.
Alguns vizinhos, mais provocadores, vieram correndo avisar ao “seu” Gilberto que os esquisitos carecas estavam pedindo dinheiro para combater o comunismo.
– Êita, “seu” Gilberto! Quero ver se o senhor é comunista agora! – desafiou um deles.
O velho foi até a porta. Olhou na direção da passeata e tratou de montar a recepção. Separou entre os pedaços de madeira que serviam de tramelas para as antigas portas, um que ele dizia ser especial.
– Esse é de coração-de-negro, uma madeira dura que não quebra nunca!
Mandou que os filhos e a mulher se afastassem, postou-se na porta com os braços para trás segurando o improvisado tacape e ficou à espera.
Em poucos minutos a torcida em volta da porta já era grande e os desafios provocativos mais agudos.
– Esse velho não vai ter coragem de dizer que é comunista. Ele está com medo.
Para alegria da claque, um jovem militante da TFP se aproximou, mesmo estranhando o grupo que se formava em torno daquele homem sem camisa.
– Bom dia, senhor! Estamos pedindo a sua ajuda para acabar com os comunistas no Brasil. Qualquer contribuição será bem-vinda.
– Quer dizer, meu filho, que vocês vão acabar com os comunistas? –, perguntou Gilberto, mesmo tendo ouvido tudo.
– Isso mesmo. Vamos acabar com essa praga vermelha –, reafirmou o desavisado militante fascista.
– Então, como eu sou comunista e devo me defender, tenho o direito de acabar com quem quer acabar comigo!
A primeira cacetada, que por muito pouco não acertou cabeça, atingiu o ombro do pregador fascista provocando um grito de dor na vítima. Como resultado do impacto, o dinheiro caiu no chão e rapidamente foi apropriado pela turba.
O fanático militante da TFP, percebendo que seria atingido de novo, correu para se proteger entre os seus correligionários. Mas a perseguição continuou, com os golpes de cacete sendo distribuídos “socialmente”, para todos. Alguns tentaram reagir utilizando os estandartes. Sem sucesso. Não eram páreo para o poderoso pedaço de “coração-de-negro”.
Quando o tumulto já estava fora de controle, com muitos militantes de cabeça raspada espalhados e machucados, apareceu a turma do deixa-disso e conseguiu acalmar o intrépido e vitorioso combatente.
A TFP se recompôs mais adiante, em frente ao Cine Lux, e seguiu derrotada no único enfrentamento com o comunismo que queria destruir em Alagoas.
Ninguém mais no velho bairro da Ponta Grossa voltou a duvidar que Gilberto Soares Pinto era comunista mesmo, e dos brabos.