Viola enluarada
Miguel Gustavo de Paiva Torres
Homenagem ao nosso querido amigo Hilário Nogueira de Araújo,
em nome da turma da calçada do Colégio Guido.
Confesso que se essa rua fosse minha eu mandava ladrilhar com pedrinhas de brilhante, dando vazão a esse sentimento ancestral e metafísico da posse e de um eu dono e sujeito do mundo. A minha terra, a minha cidade, a minha rua…
Pois era assim que eu sentia e via Alagoas, Maceió e a “minha rua”. Ângelo Neto, 118. Uma rua diferente, para a qual convergia grande parte da meninada e da juventude da cidade nos anos 60 e 70, quando pulsavam nossos iluminados corações de inocentes.
Lá estavam instalados dois grandes colégios e uma instituição de ensino superior, a Faculdade de Filosofia. No Guido de Fontgalland estudavam os meninos e no Santíssimo Sacramento as meninas. No final da rua ficava a Escola de Serviço Social e a Escola de Auxiliares de Enfermagem.
Os rapazes e as moças do interior se hospedavam em dois pensionatos ali existentes. Alguns deles eram alunos do Colégio Batista, que ficava próximo, na Av. Aristheu de Andrade.
A Ângelo Neto era a maior central de paqueras da cidade, talvez do Brasil, sem exagero.
Acho que podem compreender porque passei metade dos dias da minha infância e adolescência no portão da minha casa, olhando a vida passar na minha rua, resistindo aos chamados para entrar e estudar.
Foi assim que comecei a prestar atenção em um grupo de rapazes mais velhos que sentavam na calçada dos largos portões do Colégio Guido, em feriados e fins de semana, para tocar violão e cantar o melhor da nossa MPB.
Três eram irmãos e moravam em uma casa vizinha ao Guido, Messias, Hilário e Justino. Faziam parte da única família afro-brasileira da rua. Havia algumas outras famílias de ascendência negra nos arredores mas, naquela época, e talvez ainda mais nos dias atuais, eram exceções nos bairros de classe média e classe média alta da cidade.
Messias deve ter sido o professor de violão mais conhecido de Maceió. Sempre que passava por sua casa estava dando aula. Alunos vinham dos quatro cantos da cidade.
Eu sempre cumprimentava a todos, mas sabia que rapazes mais velhos não aceitavam facilmente companhia de meninos.
Mantive-me providencialmente afastado, mas aos poucos fui chegando “sem querer chegar” e, de repente, fazia parte daquele grupo de músicos e cantores da minha rua. Outros meninos que moravam perto também foram adotados.
Assim foi com os irmãos Lauro Mendes e Petrucio Bandeira, o nosso “Tucha”, com Nilo e Nélio, sem contar alguns que vinham de perto, ou seja, da área do Parque Gonçalves Ledo, da pracinha da Caixa d’Água, Ladeira do Brito e Ladeira dos Martírios. Outros de longe como Edilson, que faleceu jovem e levou a voz de ouro que nos encantou.
A música engatou com o futebol de salão clandestino no campo do Guido e nossas vidas passaram a ser regadas a violão, voz, suor e cerveja.
O proprietário e diretor do Colégio Guido, padre Teófanes de Barros, incentivador e difusor da educação, cultura e artes, fundador da Faculdade de Filosofia em prédio anexo ao Colégio, deixava a garotada livre e solta nos seus domínios.
Aproveitou toda aquela musicalidade dos jovens e deu carta branca para a criação de um conjunto musical, que traria prestígio e publicidade ao seu Colégio. Assim, formou-se o conjunto “Os Caetés”, com Hilário na guitarra, Justino no baixo, Beto Batera na bateria e também o futuro maestro João Lyra na segunda guitarra.
Virei assistente de palco e não perdia um só ensaio do conjunto, além, é claro, dos encontros na “calçada do Colégio” nos fins de semana, sempre regados a cerveja, cigarros e futebol.
Em um desses encontros, sábado à tarde, o Djavan apareceu e mostrou ao Hilário partes de uma composição que estava trabalhando. Era música e letra muito diferente do cancioneiro tradicional dos violonistas.
Djavan era crooner e guitarrista de um fabuloso conjunto musical chamado LSD. Lutou muito e venceu. Entrou no panteão da Música Popular Brasileira e mundial.
Semana passada acessei o Facebook e vi um post do Lauro Mendes anunciando, com foto, o falecimento do mais afetuoso e querido amigo daquela época de ouro: Hilário Nogueira de Araújo, agora em silenciosa viagem para o outro lado da vida e da música.
Abatido pela Covid-19 será sempre lembrado na alegria e afetos de nossa rua, nos acordes e na harmonia musical do universo que habitamos.
Hilário realmente era um grande talento, fica essa lacuna. Joguei muita pelada com seu irmão Justino (Tino), se alguém tiver notícias Dele me informem por favor.
Estudei na colégio Guido de 74 a 87, colégio do meu coração, joguei handebol,queimado,volei e tocava na banda, tempo bom que não volta mais, conheci todos eles, eu sentava na calçada p ouvir Djavan tocando e cantando, inclusive o Tino. Que maravilha de anos que tive no Guido. Saudades.
Especificamente minhas amizades eram desencadeadas mais afortunadamente com o Messias, haja vista às atividades pedagógicas que exercíamos e, por outras finalidades. Como tal, uma das suas irmãs (na intimidade, Dazinha) foi casada com um dos meus saudosos cunhados(Jose) e, em virtude do seu casamento fora residir em Guarujá/SP, permanecendo por lá, até o seu falecimento, e de cuja convivência brotou um casal de filhos, os quais, até hoje, bem sadios e bem estudados. Como se diz: bem vividos. Mas, sempre acompanhando “de visu” os ingredientes musicais contidos naquela prestigiada casa. O próprio Messias, em todos os Colégios que trabalhava, o seu foco principal era o Violão. Até mesmo, quando conversava com ele, nos intervalos da Licenciatura que estudávamos no CESMAC, as discussões suplementares eram voltadas para à musicalidade. Ele já me dizia, o violão é para todos nós, lá de casa, o maior ‘prato’ para degustarmos, no dia-a-dia. Sempre tive para àquela família uma profunda consideração, pelos seus dotes artísticos e pelo seus bons princípios (éticos e morais). É como participo.
A titulo de adendo e, diante, do contexto supra, minhas(nossas) condolências à família Nogueira de Araújo, ora enlutada.
Uma plêiade de jovens musicistas que dedicavam seus talentos ao cultivo da musica de qualidade. Provavelmente se vivessem suas juventudes nos tempos atuas não teriam desenvolvido arte tão refinada. Parabéns ao autor da matéria, grande cronista Miguel Gustavo.
Hilário foi meu colega de turma no Guido e estudei violão com o Messias. Faço minhas as palavras do autor, inclusive sobre a delicada “maciez” de nosso amigo Hilário. Voz baixa, suave e um grande som. Se foi por problemas renais gravíssimos sem ter conseguido vaga para uma hemodiálise. Vários médicos de nossa turma se movimentaram mas não conseguiram sua internação. Embora em tempos de COVID, não foi o que o levou na grande passagem.