Uma noite de luar, um cajueiro solitário e um governador poeta

Edberto Ticianeli

O dia fora atribulado para Silvestre Péricles de Góis Monteiro, o polêmico e valente governador de Alagoas. Era um sábado, 5 de novembro de 1949, e mesmo assim tivera que percorrer alguns municípios próximos de Maceió, o que lhe permitiu chegar a tempo de jantar com sua família no Palácio dos Martírios.

Após a refeição, demorou-se pouco lendo alguns jornais e resolveu recolher-se mais cedo ao “leito governamental”.

Já passava da meia-noite quando acordou incomodado com o calor. Foi até a sacada do Palácio, acendeu um cigarro e notou que a Igreja dos Martírios, no outro lado da Praça, brilhava de uma forma nunca vista por ele.

Logo descobriu a razão. Uma imensa lua cheia estava estacionada sobre Maceió.

Admirado com claridade daquela noite, o lado poeta do governador aflorou e ele começou a imaginar como estaria a Lagoa Mundaú toda iluminada.

A rimas pululavam em sua cabeça. A primeira delas, e a mais forte, tentava estabelecer alguma relação entre “Mundaú” e “luar de prata”, mas algo lhe dizia que havia algum risco de ser mal interpretado por tal ousadia.

Ainda na varanda, puxou uma cadeira e, de papel e lápis nas mãos, começou a rabiscar frases e palavras que poderiam compor um futuro verso.

Já tinha anotado que “prata” poderia rimar com “ingrata” e que, se tratando de lagoa, era melhor encontrar rima para “Manguaba” que cair no lugar comum de harmonizar “Mundaú” com “Sururu”.

Mas logo a inspiração lunar resolveu se manifestar e os versos surgiam aos borbotões, afinal, quem estava ali era um poeta da Academia Alagoana de Letras, lugar conquistado a duras penas, após ser glorificado pela crítica ao lançar o livro No Tempo das Rimas em 1947, quando estava iniciando seu mandato de governador de Alagoas.

Quem não lembra de:

…Entro na tua casa. O sol fulgura.
Mas, dentro em mim, há frêmitos dolentes
de incertezas, saudades e ternura.

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***

Meia hora depois, o Palácio dos Martírios entrou em alvoroço. O governador queria que seus assessores mais próximos, todos eles, fossem levados à sua presença, principalmente os motoristas dos automóveis do Governo.

Pouco tempo depois, duas dezenas de auxiliares e até alguns secretários estavam na antessala do gabinete do governador. Todos apreensivos e com cara de sono, imaginavam a gravidade do problema.

Silvestre entrou na sala segurando um papel e os convidou:

— Quero que me acompanhem até o Tabuleiro do Martins.

E assim, um pouco depois de uma hora da madrugada, partiu a caravana em direção a um dos bairros de Maceió menos habitado à época.

Depois de alguns minutos na pista asfáltica, o carro líder, com o governador a bordo, embrenhou-se mato a dentro até encontrar uma clareira em cujo centro estava um velho cajueiro.

Os outros carros chegaram em seguida, após vencer obstáculos naturais, como algumas crateras e galhos de árvores deitados sobre o que parecia um caminho de carro de boi.

Silvestre, de pé ao lado do cajueiro, ordenou que os automóveis formassem um semicírculo e mantivessem os faróis ligados e apontando para ele.

Feito isso, colocou os óculos e sem largar a folha de papel, disse:

— Trouxe os senhores aqui para que tivessem o privilégio de conhecer uma obra prima da poesia brasileira. Acabei de compor esse poema e achei que vocês, meus amigos, deveriam ter a honra de ouvi-lo em primeira audição.

A plateia, atônita, se entreolhava sem acreditar no que estava acontecendo. Duas horas da madrugada de um domingo e eles se encontravam no meio de um matagal no Tabuleiro do Martins para ouvir uma poesia.

— O poema que vou ler para vocês é dedicado a este cajueiro solitário, que vi ontem à tarde quando passei por aqui indo visitar o sítio do Brandão.

Dito isso, leu a poesia.

***

Lamentavelmente, Silvestre não guardou tal obra prima e nem lançou outro livro com ela. Os que testemunharam a sua apresentação em avant-première também fizeram tremendo esforço para esquecê-la, não por falta de qualidades literárias na obra, mas por vingança.

Fico triste, sei que frustrei a todos por não apresentar aqui a tal “obra prima”. Mas garanto que se encontrá-la, vou convidá-los para conhecê-la, com apresentação na mesma hora e lugar, talvez sem o cajueiro que não deve mais existir.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

2 comentários em “Uma noite de luar, um cajueiro solitário e um governador poeta

  • 4 de junho de 2021 em 16:19
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    A foto do cajueiro dispensa poema de palavras, ele é a essência da poesia,
    Quem é o autor da foto, ou fotomontagem?

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    • 4 de junho de 2021 em 17:39
      Permalink

      Nireu, não encontrei o autor da foto, mas sei que foi usada em uma divulgação da Embrapa. Tive o trabalho de somente limpá-la de alguns canos.

      Resposta

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