Vingando uma camisa
Edberto Ticianeli
Todo menino que aprontou alguma presepada na vida tem uma história para contar envolvendo bicicletas.
Devo ter uma dúzia delas, mas me recordo de uma que foi especial por me proporcionar uma vingança, daquelas que lavam a alma.
Conto como aconteceu.
Habitando o popular bairro da Ponta Grossa e vendo diariamente centenas de pessoas utilizando bicicletas em seus deslocamentos, naturalmente me surgiu o desejo de ter um desses veículos.
Ficava sonhando em não ter que caminhar até o Colégio Estadual de Alagoas no Centro de Maceió. Mas com 12 anos de idade, o maior desejo mesmo era usá-la para me divertir como faziam outros meninos do bairro.
Ficava no sonho. Meu pai, temendo algum acidente, alegava que não tinha naquele momento condições de comprar uma.
O que ele não sabia era da existência de algumas “garagens” que alugavam bicicletas. Era nelas que deixávamos alguns dos nossos trocados.
O aluguel tinha preços diferenciados. As bicicletas mais novas eram mais caras e as mais desgastadas ficavam mais em conta, além de oferecerem como bônus uma espécie de vacinação antitetânica, tamanha a quantidade de ferrugem.
Independente das condições dos equipamentos, os seus proprietários exerciam rígido controle para que não se desgastassem além do contratado. Se alguém alugasse um deles por uma hora, tinha que cumprir britanicamente o horário.
Os que falhavam eram excluídos do quadro de locatários responsáveis e ficavam sem ter acesso as bicicletas por bom tempo.
Para nós, os locatários, essa falta de flexibilidade era inaceitável. Que mal provocava uns minutos a mais?
Minha revolta era justificada por que em pouco tempo eu estava excluído de quase todas elas, menos a do “Chupeta”, lá no Vergel do Lago, nos fundos do Colégio Municipal.
CLIQUE AQUI E CONHEÇA A HISTÓRIA DO VERGEL DO LAGO EM MACEIÓ
“Chupeta” era o terror dos atrasados. Lá o pagamento era adiantado e a camisa do usuário ficava penhorada como garantia. Dependendo do atraso, ela poderia passar por rápido tingimento num latão de óleo queimado.
Temendo essa drástica punição, durante semanas consegui cumprir o horário estabelecido para a devolução da bicicleta. Na pressa, passei de morrer atropelado umas duas vezes por pedalar perigosamente na frente de automóveis.
Mas, como acontece com todo mundo, teve um dia em que perdi a hora. Lembro que entrei na Rua Rocha Cavalcante “cantando” pneus, mas de nada adiantou.
Entreguei a bicicleta e calmamente o “Chupeta” disse:
— Menino, pegue a sua camisa dentro daquele balde ali e desapareça da minha frente.
Saí dali com tanta raiva, que quando cheguei em casa a vingança já estava arquitetada.
Combinei com alguns amigos os detalhes e, no sábado seguinte, eles foram até o “Chupeta” e locaram quatro bicicletas, pagas por mim, que aguardava escondido na esquina do Colégio Municipal.
Claro que deixaram camisas velhas, previamente escolhidas para terem um triste fim.
De posse das bicicletas, seguimos pela Avenida Monte Castelo em direção à “Pista do Vergel”, um píer de concreto à margem da Lagoa Mundaú e que serviu para reabastecer hidroaviões durante a 2ª Guerra.
A “Pista”, durante os sábados à tarde, se transformava numa passarela para os ciclistas da região, que exibiam bicicletas ornamentadas como se fossem um carro de matuto ou realizavam alguns malabaristas sobre apenas uma das rodas.
Conseguir equilibrar a bicicleta sobre qualquer das muretas laterais era o maior desafio do local. A “Pista” terminava num declive suave, mergulhando na Mundaú.
Chegamos timidamente nessa verdadeira festa com as nossas bicicletas alugadas — uma vergonha para os padrões do local. Fizemos o reconhecimento da área com um breve passeio. Depois disso, nos postamos alinhados e arrancamos em direção à lagoa e, para surpresa de todos, mergulhamos junto com as bicicletas.
Saímos da Mundaú calmamente, deixando lá as bicicletas do “Chupeta” morrerem afogadas (soubemos depois que ele as recuperou).
Nunca mais voltei ao “Chupeta”, mas minha camisa estava vingada.