Bom Dia, México
Miguel Gustavo de Paiva Torres
Manuel tinha um prazer especial com o seu ritual matinal. Ler a sua coluna no jornal El Universal degustando o seu pequeno almoço matinal: feijão refrito, ovos mexidos na salsa de tomate e pimentas vermelhas ou verdes, sopinha de bucho com tripas, tortilhas amarelas verdes pretas e vermelhas.
O festival diário de cores e sabores da comida mexicana acompanhada por um copão de Pulque, a bebida fermentada do cactus Maguey, que pode substituir o café torrado e coado no pote de argila, neste magnífico café da manhã tradicional.
Manuel Buendía foi o mais famoso e corajoso jornalista da história recente do México.
Incorruptível. Foi assassinado, como Colosio, com tiros à queima-roupa, na calçada do prédio do El Universal, ao sair do trabalho, em 1982, ano em que o PRI iniciou a sua aliança com os poderosos padrinhos do narcotráfico, que conseguiriam atingir nos anos 80 e 90 poder econômico maior do que o próprio Estado.
Quem sabia ler, no México, lia todos os dias a coluna e as matérias de Manuel Buendía. Denúncias diárias. Uma verdadeira cruzada bem informada. Tinha fontes privilegiadas de informação, inclusive de contatos no alto escalão da CIA no México.
A CIA e a DEA, a agência para combate às drogas e ao narcotráfico norte-americana, viviam às turras. Cada uma se achava mais importante do que a outra na defesa dos interesses nacionais dos Estados Unidos.
Quando Buendía revelou que a CIA havia feito acordo com narcotraficantes para o treinamento de contra-guerrilheiros, em território mexicano, com o beneplácito de Washington e do governo mexicano, para intervenções armadas em processos revolucionários na América Central, o caldo entornou de vez.
Para o PRI, partido que se auto intitulava farol da América Latina e protetor dos movimentos sociais das esquerdas latino-americanas, a revelação foi um “tiro no peito” do sistema. Uma desmoralização e um desmascaramento.
O PRI já vinha sofrendo um desgaste crescente com os setores da esquerda mexicana e latino-americana desde o massacre dos estudantes que se manifestavam pacificamente no centro político da Cidade do México, em 1976, por ordem direta do presidente Luís Echeverría; justamente aquele que tinha o discurso mais à esquerda entre os notáveis do PRI.
Milionário, cruel, despótico, Echeverría também deu continuidade e ampliou a prática secreta nos governos mexicanos de trabalharem de comum acordo com os serviços de informação dos Estados Unidos para monitoramento dos exilados políticos latino-americanos que acolhiam em seu solo.
Fidel Castro, Raúl, e todos os cubanos que formaram o núcleo revolucionário que iria regressar a Cuba para derrubar o governo do corrupto Batista, foram monitorados de perto pelas autoridades mexicanas em conluio com a “inteligência” norte-americana. Na época a instalação de um regime ditatorial stalinista na Ilha não estava no radar. O objetivo, pelo contrário, era derrubar uma ditadura opressora da direita e instaurar um sistema político democrático em Cuba.
O assassinato de Buendía, no centro da Cidade do México, em 1982, como o de Colosio, em 1994, foram, em dois momentos, recados claros. Um estampido de realidade. O México se metamorfoseava paulatinamente em um narcoestado, no apagar das luzes do século XX.