Os brasões do Império e os sacos de dinheiro
Miguel Gustavo de Paiva Torres
Quando servi na Costa do Marfim, meu primeiro posto diplomático, entre 1976 e 1980, um dos fatos que mais me impressionou foi o de saber que o então presidente da República, Félix Houphoet Boigny, entregava nas mãos, de cada embaixador que designava para um posto no exterior, um saco de dinheiro. Dinheiro suficiente para representar a Costa do Marfim como merecia ser representada: próspera e elegante.
Anos depois, aprofundando minhas leituras e pesquisas sobre a diplomacia brasileira no Império e na República verifiquei que essa prática também era normal nos tempos do Império do Brasil. Pedro Segundo seguia a mesma lógica de Houphoet Boigny: sem dinheiro o embaixador não pode representar com eficiência e elegância os interesses do Império no exterior.
Entregava, assim, vultosas quantias nas mãos dos seus escolhidos para alugar ou comprar residência; obras de arte, tapetes raros, roupas de marca da época e comida e bebida à vontade para as necessárias recepções e banquetes.
No Segundo Império não se tratava mais da questão do reconhecimento da independência do Brasil mas, sim, de obter financiamentos nas grandes casas bancárias da Europa. Para impressionar essa alta burguesia, era obrigatório gastar muito dinheiro e transmitir confiança e solidez financeira aos ricos banqueiros.
Nessa linha diplomática estratégica, nossa repartição dos negócios estrangeiros passou a contar com um suposto, não escriturado e vasto patrimônio de bens móveis e imóveis no exterior.
Esses bens, no entanto, de certa maneira passavam a pertencer aos nossos embaixadores, ministros plenipotenciários, como se dizia na época.
A maior parte desses representantes do império era de homens de famílias nobres e já muito ricos. Todos educados na cultura, refinamento e bons costumes da civilização europeia.
Poliglotas e cultos, nossos representantes tinham o dever de bem impressionar nos salões de Paris, Londres e outros. Suas casas, obras de arte, tapeçarias, bibliotecas, jardins, cama e mesa; deveriam estar à altura das cortes europeias.
Ao final de suas missões, exitosas ou não, transferiam o patrimônio adquirido com o dinheiro público para os seus patrimônios privados; e vinham viver os seus últimos anos de vida e morrer no solo pátrio, passando aos descendentes os seus bens, por herança.
Essa era a cultura aceita e reconhecida como natural por nossa elite política e diplomática. O público se misturava ao privado por merecimento e serviços prestados.
Os resquícios dessa cultura perduram na administração pública e no Itamaraty até os dias de hoje, republicanos e populistas.
Foram-se os brasões, ficou o patrimônio da parceria público-privada.