A madame é quem manda
Miguel Gustavo de Paiva Torres
Antes dos 30, ainda jovem, acreditava na seriedade, na justiça e no trato isento e correto da coisa pública, na nossa República.
Eu estava trabalhando na melhor escola que poderia haver para distinguir o discurso e a prática: a administração de um órgão público renomado; o Itamaraty.
Estávamos ainda no regime militar, nos anos 80. A administração era responsável pelo patrimônio da nossa Casa no Brasil e no exterior.
Manejava também o orçamento e a distribuição de todas as verbas para a sede e para os postos; inclusive as verbas secretas disponíveis para as ações de política externa.
Na época, o Itamaraty alardeava a nossa conquista diplomática do continente africano, raiz comum da nossa sociedade e cultura.
Recebíamos e enviávamos missões diplomáticas freneticamente entre Brasília e África para assinatura de acordos bilaterais e abertura recíproca de embaixadas em Brasília e nas capitais africanas.
O Departamento de Pessoal do Itamaraty prometia mundos e fundos aos diplomatas que aceitassem esse desafio pioneiro e histórico do Brasil. A África era um “frisson”. Um trunfo de enorme repercussão da política externa do Brasil, em pleno regime militar.
Analisava diariamente os pedidos que chegavam de todos os postos para encaminhamento dos despachos e eventual aprovação da alta chefia da administração do Ministério.
Naquele dia tomei o meu primeiro choque de realidade: o embaixador recém-chegado ao Gabão havia alugado um escritório para a chancelaria em Libreville, a capital do país; e relatava as condições modestas do local — localizado no andar superior de uma oficina de automóveis. Pedia prioridade para a aquisição de aparelhos de ar condicionado, submetido que estava a tremendo calor e humidade equatorial.
Outro telegrama, este de embaixador recém-chegado a Washington, desta vez enviado de forma particular, fora da série oficial de telegramas da Casa, pedia diretamente ao chefe superior da Administração, o envio de vultosa quantia em dólares para a troca de todas as cortinas da residência.
Explicava que as cortinas lá colocadas pela esposa do seu antecessor eram de extremo mau gosto e que sua esposa, embaixatriz muito conhecida e reverenciada, desejava fazer a troca imediata, para dar início à vida social do casal em Washington.
No final da tarde, às vezes já noite, chegavam de volta os documentos despachados com a autorização ou indeferimento dos pedidos dos postos.
Chegou diretamente às minhas mãos trazidos por um contínuo negro e alto, vestido com libré de cor preta e botões dourados. Não acreditei. Gelei. As cortinas da madame de Washington estavam autorizadas, com recomendação de envio imediato do dinheiro. Os aparelhos de ar condicionado para a chancelaria em Libreville não estavam autorizados e a resposta ao posto deveria ser o texto padrão da administração: “…tendo em vista a atual situação orçamentaria e a necessidade de contingenciamento…”.
Levei os despachos para a minha chefe imediata e comentei em tom de perplexidade: — As cortinas da residência em Washington foram autorizadas e os aparelhos de ar condicionado para Libreville negados. Ela, competente, experiente e doce colega riu serenamente e disse-me: “meu filho é o poder, o Poder.”
Texto excelente, claro, objetivo, incisivo que esclarece e escancara,os meandros do poder. Comove a perplexidade do jovem diplomata. Parabéns Miguel