A crônica que Adoniran Barbosa faria
Por Lúcio Verçoza¹
De tanto andar a pé pelas ruas, Adoniran Barbosa notou que, assim como as pessoas, a cidade também se movia. Quando criança, labutou entregando marmita. Depois seguiu por uma vida laboral repleta de bicos. Como encanador ou mascate, caminhou pela acidentada topografia das calçadas. Se fosse alguém fadado a ganhar o ordenado preso no escritório, talvez não sobrassem tempo e energia para catar a poesia que as pessoas comuns entornam no chão.
Foi no tempo de artista boêmio que conheceu o Mato Grosso. A partir da história de vida do amigo, compôs “Saudosa Maloca” – a crônica mais bem acabada sobre a ruína do progresso produzido pela especulação imobiliária.
Se o senhor não está lembrado
Dá licença de contar
Adoniran era um cronista formidável. Desses que escolhem cada palavra como quem penteia fio por fio de um cabelo embaraçado, cheio de nó. Conseguia escrever com beleza e profundidade sobre o trágico e o injusto. Ele era a lâmpada, e as mariposas eram as histórias musicadas. Boa parte de seus sambas são como um canto rouco que se apõe à destruição dos lugares de memória.
Aqui onde agora está
Esse edifício alto
Era uma casa velha um palacete assobradado
A Praça da Sé, depois de modernizada, era para ele como uma mulher que virou dondoca – e Adoniran não admirava as dondocas. Via o imponente edifício, recém-inaugurado, pela ótica da demolição das casas e malocas. Observava a opulência das fachadas modernas pela perspectiva dos despejados, pelo ângulo de Mato Grosso e do Joca.
Que tristeza
Que eu sentia
Cada tábua que caía
Doía no coração
Caetano um dia escreveu sobre a força da grana que ergue e destrói coisas belas. Isso não se aplica somente a São Paulo. Se o cronista Adoniran estivesse vivo e se caminhasse pelas ruas de Maceió, certamente estaria mirando as coisas belas destruídas pela força do dinheiro. Muito provavelmente, escreveria uma crônica em forma de samba, que desagradaria a Braskem e agradaria a cidade. Seria uma canção para a cidade não esquecer de si mesma. Para não esquecer de como era seu rosto e de como ficou após décadas de exploração de sal-gema. Seria uma canção para tocar nos corações de bisavôs e bisnetos. Uma canção para guardar na memória.
Saudosa maloca
Maloca querida
Que din donde nós passemos dias feliz de nossas vidas
¹ Sociólogo e autor do livro “Os homens-cangurus dos canaviais alagoanos: um estudo sobre trabalho e saúde” (Edufal/Fapesp). Escreve semanalmente a coluna Balaio de Ouricuri para o A Voz do Povo.
*Publicado originalmente na Coluna Balaio de Ouricuri do A Voz do Povo. https://www.vozdopovo.org/a-cronica-que-adoniran-barbosa-faria/
Crônica emocionante ao relembrar o grande Adoniran Barbosa, marco de nossa música brasileira.