Tudo muda e nada muda
Miguel Gustavo de Paiva Torres
Quase 40 anos depois do início da nossa empreitada diplomática na África negra, sob o manto do discurso universalista e suposto reconhecimento da importância das raízes africanas na formação do Brasil, regressei à África, desta vez para chefiar uma embaixada.
Tudo continuava como dantes no quartel de Abrantes. A diferença mais notável era a da total indiferença do Itamaraty com essa rede de postos periféricos: sem funcionários permanentes do quadro do serviço exterior e recursos minguados.
Os funcionários africanos, contratados locais, ocupavam a maioria dos lugares chaves, como a administração financeira e contábil dos postos, dos veículos, equipamentos, consertos e compras de combustível e alimentos.
Também ocupavam, em muitas embaixadas, os serviços consulares, com emissão de passaportes, vistos e outras atividades que geram renda consular para o Tesouro Nacional.
Todas essas atividades, em tese, seriam restritas aos funcionários do quadro do serviço exterior, passíveis de serem penalizados, em casos de infrações, pela legislação brasileira, no Brasil.
Lembrei do comentário do meu colega embaixador: você aceita um desses postos periféricos e termina preso, ou morto por um ataque fulminante do coração, malária, ebola ou causas desconhecidas.
O meu antecessor havia passado pouco tempo por lá. Vítima de enfarte numa capital sem recursos hospitalares, foi transferido em UTI aérea para Paris, sobreviveu e ganhou novo posto, com recursos médicos e hospitais equipados.
A corrupção na África é endêmica, faz parte da própria história ancestral de guerras étnicas, saques das propriedades e escravização e venda de sobreviventes das tribos rivais.
Continuou no mundo híbrido da colonização europeia, contrária às suas próprias noções de moral, ética, crime, lei e punição; em seu encontro com as civilizações africanas.
Mais fácil do que a guerra, violência e aniquilação para a conquista e domínio colonial era comprar apoios locais, quando havia o interesse da cooptação e da colaboração.
Na África de colonização francesa, por exemplo, onde vivi um total de cinco anos, aprendi, ainda jovem, que para resolver e obter ajuda para qualquer coisa era preciso primeiro ofertar um “cadeau”. Um presente ou oferta, como dizem em Portugal. No passado, a maioria desse dinheiro ou bens ofertados era repartido com os irmãos e irmãs tribais, que permaneciam em seus vilarejos.
Atualmente, acostumados aos métodos do individualismo e do conceito de família ocidental, as ofertas servem para uma vida de riqueza e edificação de luxuosas mansões, onde vivem isolados de suas antigas famílias tribais, raramente visitadas, para não serem obrigados a compartilhar os seus bens e dinheiro.
É nesse ambiente cultural que ocorre, com certa naturalidade, desvios de dinheiro, gasolina, óleo diesel e tudo o mais que for passível de apropriação, imitando os fantasmas ocidentais dos superfaturamentos, subfaturamentos e de todas as manobras contábeis possíveis, aprendidas ao longo do tempo na convivência com os “brancos”.
Por isso é, de certo modo, mais fácil fazer negócios por lá. Mas não é fácil dirigir uma embaixada, sem respaldo administrativo habilitado dos órgãos centrais, como exige a lei.
Entre a cruz do sacrifício e a espada da lei, a tática mais frequente é a do abandono e do silêncio, considerado desde tempos da antiguidade, como a melhor resposta diplomática para os que não querem dar explicações.
Mas o fenômeno da corrupção, levada aos quatro cantos do mundo pela chamada “civilização” ou “missão civilizadora”, como ainda dizem os franceses em seus textos e discursos, não se restringiu ao continente africano, espalhou-se pelo Oriente Médio e pela Ásia.
Para sobreviver, nesta realidade silenciosa e perigosa, muitos corriam riscos conduzindo o barco sem levar em conta os furos no casco. Terminavam naufragando, sozinhos.