O trem do Mercosul

Miguel Gustavo de Paiva Torres

Muita lenha foi queimada na história das desconfianças e rivalidades entre Brasil e Argentina desde o surgimento das duas nações vizinhas no sul da América. Não é necessário falar sobre isso. Vocês todos sabem. Ainda está no inconsciente coletivo das duas jovens nações, ambas bicentenárias.

Mas o bicho pegou feio, quando, no governo Geisel, tropas brasileiras chegaram a ser mobilizadas no sul do Brasil para garantir a execução integral do acordo brasileiro paraguaio para a construção da hidroelétrica de Itaipu. A Argentina, já no governo Figueiredo, construiu a hidroelétrica de Corpus e a vida seguiu em frente. Nessa época, dava meus primeiros passos na carreira diplomática.

Os dois fraternos inimigos históricos engajaram-se em uma insana competição em busca do domínio das tecnologias nucleares e do incremento armamentista formal e secreto. Afinal, eram ditaduras militares com mentalidade militar, ou seja, a guerra nada mais é do que a continuação da diplomacia.

O grande mestre dessas ditaduras do cone sul era o big brother sentado em Washington. Patrocinou e apoiou todas sempre em nome da liberdade democrática e dos direitos humanos. Um paradoxo da lógica em sua essência enviesada pelo poder do dinheiro e das armas.

As relações entre o Brasil e Argentina começaram a se distensionar com o apoio de Brasília a Buenos Aires na guerra das Malvinas. O Chile, por sua vez, inimigo histórico da Argentina, Peru e Bolívia, sob a batuta de Pinochet, apoiou ostensivamente a Inglaterra no conflito.

Mais tarde, quando Argentina e Chile quase declararam guerra na questão da soberania sobre o canal de Beagle, o Brasil mediou nos bastidores e evitou derramamento de sangue.

Anos depois, com a queda das ditaduras do cone sul, abriu-se uma janela de oportunidade para o ressurgimento democrático na Região.

Os Estados Unidos continuaram sua cruzada anticomunista apoiando e armando ditaduras na América Central sempre em nome dos direitos humanos e das liberdades democráticas.

Com sua projeção ideológica na América Latina, Cuba era o alvo a ser abatido pelos falcões dos pregadores democráticos de Washington, a qualquer custo, inclusive trabalhando em conjunto com narcotraficantes mexicanos e com o figadal inimigo iraniano. Longa e complexa essa história de nossas democracias.

Mas foi o bom senso, a cultura intelectual e a qualidade das diplomacias, lideradas por José Sarney e Raul Alfonsín, que mudaram o jogo político no cone sul, iniciando o processo de desarmamento dos espíritos e de construção de um processo de pacificação e desenvolvimento social e econômico da nossa região, sempre trabalhando o barro da política e da diplomacia com nossas próprias mãos.

A primeira ação concreta do presidente Sarney foi a de restabelecer relações diplomáticas com Cuba e abrir um canal direto de diálogo com o regime de Fidel Castro. Criticado, defendeu-se dizendo o óbvio: é normal ter relações diplomáticas com todos os países do mundo. E lá se foram para a lata de lixo os passaportes brasileiros com o carimbo “Não é válido para Cuba”.

A segunda ação foi em conjunto com o seu amigo Alfonsín: um tratado bilateral com vistas à criação de um mercado comum entre os dois países para complementação econômica e alargamento do comércio e cooperação. Essa iniciativa foi a semente do Mercosul.

Em dezembro de 1988, na Cúpula do Grupo dos Oito em Punta del Este — fórum de diálogo e concertação diplomática criado na esteira da queda das ditaduras sul americanas —, estavam reunidos Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, México, Peru, Colômbia e Venezuela. Alfonsín e Sarney discutiam com o Uruguai e o Paraguai a formação de um novo bloco geoeconômico e político regional.

A proposta foi ríspidamente e fortemente contestada pelo México, que acreditava ter a primazia política e diplomática da liderança da América Latina e lutava com toda sua força para agradar aos Estados Unidos, plantando na América do Sul a lança da Área de Livre Comércio das Américas, projeto que derrotamos.

A delegação do México chegou ao ponto de, na madrugada antecedente à divulgação da Declaração, cortar um parágrafo sobre o tema de modo clandestino, nos serviços de reprodução dos documentos do evento.

Dia e noite de cão para todos nós que estivemos na delegação do Brasil no evento.

Samuel Pinheiro Guimarães, então chefe do departamento econômico do Itamaraty, responsável pela negociação do texto sobre o tema da integração regional na cúpula, defendeu como um leão o nosso Mercosul.

Foi memorável. Uma aula de diplomacia. Como corolário, ficou explícito que o novo bloco teria como objetivo político a guarda da democracia ressurgente na América do Sul.

Ditadura nunca mais, foi o oxigênio que respiramos em Punta del Este.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *