A esquerda no tempo dos digitais influencers

Edberto Ticianeli
jornalista

Em 1942, Drummond já cantava: “… quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora?”. Esses versos me aportam à lembrança quando leio comentários de filiados de partidos de esquerda cobrando a volta às bases como forma de oxigenar a militância e resolver os problemas políticos de suas organizações.

O que era esse trabalho de base de tão saudosa memória? Eram as organizações partidárias por local de moradia, trabalho ou estudo. Nos locais de trabalho, eram núcleos que participavam dos sindicatos ou pretendiam disputá-lo; nos locais de estudos, atuavam nas entidades estudantis; e, nos locais de moradia, nas comunidades de base das igrejas ou nas associações de moradores.

Mas “Minas não há mais”. Todas essas instituições perderam força e raras bases sobreviveram à onda neoliberal. Parte dessa militância migrou para os grupos identitários, que não conseguem expandir suas organizações com a mesma amplitude dos antigos núcleos partidários.

Se não temos as memoráveis bases como fonte de construção partidária e formação de lideranças e quadros, o que as substitui? Superar esse obstáculo é um dos grandes desafios das organizações políticas que pretendem construir um mundo melhor.

O pior é que, me valendo novamente do Drummond, José está sem discurso e a utopia não veio. Então, qual programa político guiará as ações organizativas? Com quem caminharemos, mesmo que com a luz apagada?

“Mas você não morre, você é duro, José!”

Tal qual o Highlander mineiro, a esquerda resiste, mas precisa urgentemente voltar a tocar sua valsa vienense.

Sem desprezar a importância da resolução dos problemas políticos, arrisco a fazer algumas observações que podem provocar a discussão sobre a formação das novas lideranças no campo da esquerda, principalmente daquelas que se inscrevem nas chapas para as disputas eleitorais.

Inspiro-me nos problemas que percebi durante a recente campanha eleitoral.

O mais importante deles foi a chegada repentina e tardia de alguns candidatos às redes sociais. Se comportavam como se o ambiente digital fosse apenas mais um espaço de publicidade, como o jornal, rádio e TV.

Utilizaram boas peças, cumprindo as orientações mais corretas sobre como e quando realizar as postagens. Alguns até com excelentes propostas, apresentadas por bons discursos. Mas o bonde não veio, José. Não tinham passageiros ou seguidores.

A esquerda não percebeu que esse ambiente não é somente uma mídia para divulgar publicidade às vésperas da campanha. Ele permite que se crie, por exemplo, um Pablo Marçal para disputar o poder na capital paulista e que já pontua expressivamente nas pesquisas de intenção de votos para a sucessão da presidência da República.

Antes, a formação de uma liderança política, como a do Lula, recebia o batismo nas longas jornadas sindicais, nas bases, e em campanhas eleitorais, com algumas derrotas. Atualmente é possível que um “digital influencer” se consolide em poucos anos. Claro que nem todos conseguem, mas são robustos os números dos que chegam lá.

No passado, também surgiram alguns poucos fenômenos eleitorais a partir da exposição em jornais, revistas, livros, rádio e televisão. A novidade é que, se o acesso a esses veículos foi e continua controlado pelos poucos barões da comunicação, na internet é bem mais fácil romper essa barreira.

Se a esquerda precisa falar para as multidões, as massas, como eram mais conhecidas no jargão dos antigos militantes, não pode empinar o nariz para as redes sociais sob o pretexto de que nelas predominam assuntos sem muita importância.

Para José, que faz versos, ama e protesta, isso não é problema.

Não precisa imitar os casos de sucesso e fazer proselitismos sobre “auto ajuda”, “moda” ou “meritocracia” para se atingir as massas. Se, por exemplo, os problemas de mobilidade urbana de um município são abordados diariamente nas redes sociais por alguém que domine o assunto, é muito provável que consiga ser referência para os que sofrem com isso.

Se um militante de esquerda é um destacado líder sindical, nada impede que continue sendo, mas é preciso que também o seja nas redes sociais, onde pode se promover junto à sua categoria e se tornar conhecido no resto do universo, se assim tiver características e capacidade para tanto. Destaco, desde já, que as lideranças nesse ambiente terão que dominar, minimamente, a arte da comunicação.

Um determinado bairro pode ter uma liderança que discuta os problemas ali existentes por ausência das ações dos órgãos públicos. Um jovem estudante secundarista pode criar uma rede de lideranças estudantis por escolas públicas e reivindicar melhorias para elas. Se ele visita esses estabelecimentos e faz vídeos com os colegas expondo os problemas, logo será uma referência no segmento, levando-o a ter potencial para conquistar entidades estudantis ou mesmo concorrer a um mandato popular.

Arrisco afirmar que a esquerda deve primeiro criar seus “influencers” e somente depois estimulá-los a disputarem mandatos, caso tenham adquirido projeção suficiente para tal. Mas esse é um trabalho que precisa de planejamento, com anos de antecedência. Cobra a preparação dessas lideranças para que tenham amplo domínio do projeto político partidário — pelo menos quando ele existe.

Se continuar a predominar a concepção de chapas “Ajuntado de Interesses Eleitorais”, a lógica será sempre aquela que permite chorar saudosamente a não existência do trabalho de base ou constatar que José está sozinho no escuro, qual bicho-do-mato, sem saber para onde marchar.

Obrigado, Drummond.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

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