A derrota da Áustria de Hitler para os “joelhos negros” peruanos em 1936
Edberto Ticianeli – jornalista
Em 1987, o futuro advogado alagoano Adriano Argolo viajava pelo Peru — onde permaneceu por quatro meses —, quando conheceu um jovem que lhe revelou detalhes sobre um episódio ocorrido nos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936, a chamada Olimpíada Nazista, envolvendo a seleção peruana de futebol.
Esse neto de um dos jogadores deste selecionado atraiu o interesse de Adriano Argolo. “Fiquei tão impressionado com a história que passei mais de três dias indo na casa dele e anotando os detalhes do que falava”, lembra o advogado.
A partir das anotações de Adriano e de uma breve pesquisa na internet, o resumo dessa história é o seguinte:
No final da tarde do sábado, dia 8 de agosto de 1936, o selecionado peruano, que já havia despachado a Finlândia aplicando-lhes uma goleada (7 x 3), enfrentou pelas quartas de finais a seleção da Áustria.
Hitler, que estava no estádio, torcia por sua terra natal (Áustria), principalmente porque a Alemanha tinha sido derrotada pela Noruega e estava fora da disputa. O chanceler nazista queria mesmo era provar que a raça ariana era superior aos negros peruanos.
O quarteto ofensivo do Peru era formado por jogadores conhecidos como os “joelhos negros“. Foram eles os responsáveis pela goleada de 4 a 2 e pela humilhação de Hitler.
Os austríacos saíram na frente e terminaram o primeiro tempo ganhando por 2 a 0. No segundo tempo, o Peru empatou e forçou a prorrogação, quando chegou a marcar mais 5 tentos, sendo que três deles foram anulados pelo árbitro norueguês Thoralf Kristiansen, que temeu desagradar os nazistas.
Faltando um minuto para o encerramento do tempo extra e da partida, o árbitro parou o jogo alegando que a torcida peruana havia invadido o gramado (versão sustentada por reportagem do jornal inglês Daily Sketch).
Entretanto, a verdade pode não ter sido essa, como revelaram outros relatos. Estes invasores “peruanos” eram torcedores alemães orientados pela equipe de Joseph Goebbels, que também ameaçou Kristiansen de morte.
Adriano Argolo se alinha com essa versão: “Como torcedores peruanos, diante de todo aparato de segurança nazista — lembremos que Hitler estava no estádio — iriam confrontar com esse aparato invadindo e ameaçando os austríacos e a arbitragem? Não tem sentido”.
No dia seguinte, Hitler interferiu para que houvesse uma nova partida, cujos detalhes seriam acertados em uma reunião extraordinária do Comitê Olímpico Internacional e FIFA. Essa é versão não confirmada.
Com ou sem a participação de Hitler, os peruanos foram realmente convocados, mas não conseguiram chegar ao local da reunião, impedidos pelos próprios alemães.
Sem a presença do representante da delegação do Peru, resolveu-se anular o jogo e foi marcada uma nova partida para o dia 10 de agosto, depois transferida para o dia 11.
No Peru houve indignação e reação a esta virada de mesa. Cláudio Martinez reuniu o Comitê Olímpico do Peru e após deliberação enviou ao chefe da delegação na Alemanha o seguinte telegrama urgente: “Cancelamento inaceitável. Ordem Presidente Benavides. Retornar a Lima com urgência”.
O Peru foi eliminado dos jogos. Os colombianos aderiram ao boicote e também se retiraram dos jogos. Argentina, Chile, Uruguai e México expressaram solidariedade, mas continuaram participando da competição.
Em Lima ocorreram protestos de rua, a bandeira olímpica foi queimada e a embaixada alemã foi apedrejada. O porto de El Callao, o principal do país, ficou fechado para navios alemães.
O selecionado voltou ao país e foi recebido com festas e seus jogadores tratados como heróis. Um deles, Carlos Alejandro Villanueva Martínez, que marcou o gol de empate aos 81 minutos do segundo tempo e o segundo gol na prorrogação, emprestou seu nome ao estádio do Club Alianza Lima, time de maior torcida do Peru.
Todo esse episódio foi confirmado pelo jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano em sua obra “Espelhos, uma história quase universal“, de 2009.
Adriano Argolo, que esteve com Eduardo Galeano em Porto de Galinhas, Pernambuco, contou para ele como soube do episódio em 1987. Para sua surpresa, o consagrado escritor lhe disse que somente tinha tomado conhecimento destes fatos em 1994.
Foi nessa mesma olimpíada que o atleta negro norte-americano Jesse Owens também provocou descontentamentos entre os nazistas, principalmente ao quebrar o recorde do salto à distância, derrotando o alemão Lutz Long.
Nestes jogos, a Alemanha conquistou o maior número de medalhas e teve sim ganhos políticos ao colocar na imprensa mundial a imagem de um país que tinha superado a derrota sofrida na Primeira Guerra Mundial. Entretanto, feitos como os de Owens e dos peruanos derrotaram a tentativa nazista de demonstrar a suposta supremacia racial ariana.
O caso dos “Joelhos Negros” não teve a mesma repercussão que o de Owens. O atleta norte-americano ficou famoso principalmente por seu desempenho nas pistas, arrebatando quatro medalhas de ouro.
Seus feitos somente foram vinculados à questão racial anos depois. Owens revelou em sua biografia que o presidente Franklin Delano Roosevelt não lhe mandou sequer um telegrama parabenizando-o por suas conquistas, e que isso o magoara mais do que qualquer desfeita promovida por Hitler.
Enquanto no Peru os jogadores negros voltaram como heróis, nos EUA a Casa Branca recebia seus atletas pela porta da frente, mas Owens entrava pelos fundos por ser negro.