O tempo e a crise

Por Sergio Braga Vilas Boas

Segundo dados apresentados pela ONU, cerca de 820 milhões de pessoas em todo o mundo não tiveram acesso suficiente a alimentos em 2018, ou seja, passaram fome. Isso representa o terceiro ano consecutivo de crescimento.

Quanto à América Latina e Caribe, a América do Sul concentra 55% das pessoas que sofrem de subnutrição, ou seja, passam fome. E aqui não estamos falando dos que efetivamente não passam fome, mas comem mal, e vivem em condições de moradia e sanitárias no mínimo escrotas.

O relatório Social Mundial de 2020 da ONU: Desigualdade num Mundo que Muda Rapidamente, relata disparidades desenfreadas. Para a ONU, a expansão econômica “extraordinária das últimas décadas, falhou em reduzir a profunda divisão entre, e dentro dos países.

Ainda segundo a ONU: “Sociedades muito desiguais são menos efetivas na redução da pobreza; crescem mais vagarosamente; dificultam que pessoas quebrem o ciclo de pobreza; e fecham as portas para o avanço econômico e social. Além disso o aumento da desigualdade reprime o crescimento econômico e pode aumentar a instabilidade política.”

Ali, o Brasil detém o vice-campeonato de concentração de renda no 1% mais rico, que açambarca 28,3% do PIB, ou seja, algo em torno de R$ 2,07 trilhões. Segundo o Filósofo brasileiro Paulo Arantes: “o mundo caminha para a brasilianisação.” Disse isso há 20 anos.

A renda abocanhada pelos mais ricos subiu em 46 dos 57 países com dados disponíveis para o período de 1990 a 2015. Ainda as alíquotas de Imposto sobre a Renda para as rendas mais altas em países desenvolvidos e “em desenvolvimento” tem diminuído.

Nos “Grandes” o IR dos ricos caiu de 66% em 1981 para 43% em 2018. Óbvio, assim há menos dinheiro para investimentos sociais.

No Brasil há algo um pouco pior, com um sistema regressivo, que taxa e sobrecarrega o trabalho e a produção, de forma indireta, e deixa livre a turma da “bufunfa”.

Segundo a OXFAM (Comitê de Oxford para Alívio das Famílias), com apenas meio ponto percentual a mais de taxação dos ricos seria possível criar 117 milhões de empregos em educação, saúde e cuidados para idosos.

Nunca é demais dizer que, a lado da catástrofe, a riqueza global cresceu 66% nos últimos 20 anos.

Ah, apenas para não esquecer, o rendimento médio mensal do 1% mais rico no Brasil em 2018, foi 34 vezes maior que dos 50% mais pobres, segundo o PNAD.

Cerca de 10 milhões de pessoas (5% da população) sobrevivem com cerca de R$ 51,00 mensais. Se considerados os 30% mais pobres, cerca de 60 milhões de pessoas, a renda média vai a estonteantes R$ 269,00 per capita.

Poderíamos preencher centenas de laudas apenas citando dados escabrosos que demostram a falência do modelo econômico que o mundo continua abraçando: a riqueza cresce, mas vai para cada vez menos pessoas e famílias.

Um sistema que separa o mundo em duas partes: os que têm e os que não tem direto a viver.

Vejo e leio muita gente falar acerca do capitalismo, qual uma força em si mesmo. Às vezes me vem à lembrança aquele personagem descrito por Zé Ramalho: “Um velho cruza a soleira/De botas longas/De barbas longas/De ouro o brilho do seu colar”. Pronto, está aí o tal capitalismo!

Não, o capitalismo tem nome e endereço. Está nas mansões indescritíveis; nos pratos impagáveis; na vida nababa de meia dúzia, e nos pusilânimes a lamber-lhes as botas esperando um pingo de “Moët Chandon”.

E eis o grande dilema: a vida segue e a democracia representativa os mantém. Nada muda. O mundo cresce e produz riqueza e desigualdade, fome e miséria na mesma proporção.

Um rastro de doentes e famélicos fugidos das misérias da África ocupa as ruas da Europa importunando o sono civilizado.

Jovens acostumados às respostas “HI-Tech”, em fração de segundos, exigem solução para suas agruras, e velhos tomados pela incerteza do fim digno, passam a desancar o tal “stablishment”, creem em soluções desesperadas remontando o passado de exceção; buscam guarida no nacionalismo xenófobo e psicopata; culpam os avanços culturais e liberdades civis.

As redes sociais explodem num reino de opiniões de estábulo, de terraplanismo, da ideologia insana do “eu acho”.

No meio de tudo isso me vem o COVID-19!

Leva o mundo às cordas.

Põe o dedo na ferida.

É preciso acabar com a desigualdade.

É preciso garantir condições sanitárias dignas.

É preciso garantir moradia.

É preciso garantir uma renda básica de sobrevivência.

É preciso priorizar a ciência, a educação.

É preciso garantir mobilidade urbana de qualidade.

É preciso garantir saúde pública e universal.

Todos indistintamente têm direito a viver.

O Vírus e sua virulência de alto contágio, não é como a fome e a desigualdade que matam milhões, mas não contagiam.

A crise que nunca nos deixou em paz, entra em crise, e nos diz que os motivos da crise estão na crise moral vergonhosa dos donos do capital, aqueles das mansões, dos pratos impagáveis, que decidiram há muito, que para que eles vivam, você deve morrer.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

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