Moraes Moreira, a voz do trio elétrico
Edberto Ticianeli – jornalista
Baiano de Ituaçu, Antonio Carlos Moreira Pires nasceu em 8 de julho de 1947 e antes de se tornar o famoso Moraes Moreira teve que tocar por bom tempo uma sanfona de 12 baixos nas festas de sua cidade.
Em 1969, quando já se apresentava na noite de Salvador, conheceu Tom Zé e por meio dele ao agrônomo Luiz Galvão. Moraes e Galvão estavam num bar quando foram apresentados à niteroiense Baby Consuelo.
Pouco tempo depois, já com Paulinho Boca de Cantor, que tinha sido o vocalista da “Orquestra Avanço”, e Pepeu Gomes, o único que já era músico profissional, apresentaram o espetáculo “O Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal“, no Teatro Vila Velha, em Salvador, Bahia. Estava formado o grupo Novos Baianos.
Fizeram história na música popular brasileira e Moraes Moreira conseguiu se destacar por ser cantor e principal compositor da banda. Permaneceu nos Novos Baianos até 1974, quando se afastou após desentendimentos provocados pelo insucesso do quarto disco, Novos Baianos, que ficou mais conhecido por Alunte.
Trio Elétrico
Nesse mesmo período o carnaval baiano começava a atrair foliões de todo o país pelos seus trios elétricos, que arrastavam multidões. O trio era um caminhão estilizado e sonorizado carregando três guitarristas e dezenas de percussionistas.
Surgiu em 1950 pelas mãos de Dodô e Osmar.
Inspirados na orquestra pernambucana Vassourinhas, que passou em Salvador a caminho do Rio de Janeiro e percorreu algumas ruas daquela capital, montaram um amplificador num calhambeque 1929 e, com cavaquinho e violão — a dupla elétrica —, arrastaram centenas de foliões.
No ano seguinte, já contando com o amigo Temistocles Aragão, o agora “trio elétrico” repetiu o sucesso desfilando num automóvel maior.
Em 1952, a fábrica de refrigerantes Fratelli Vita investiu na experiência e foi montado o primeiro caminhão de som, adaptado para a amplificação eletrônica.
Assim conquistaram as multidões e em 1959 desfilaram em Recife a convite da prefeitura da cidade.
Em 1960, com a morte de Armando Costa, sogro de Osmar Macedo e principal incentivador do grupo, desistiram do trio e pararam de tocar. Somente voltaram em 1963, contando a partir de então com a participação dos filhos e sobrinhos.
Com a nova formação, valorizada pela performance de Armandinho Macedo, que tinha ganho um concurso na TV como instrumentista, O trio de Armandinho, Dodô e Osmar voltou a dominar a cena carnavalesca baiana.
Entretanto, mesmo revelando seu potencial como equipamento para grandes festas móveis, até 1976 o trio não utilizava cantores.
Dodô e Osmar não eram contra a presença de cantores. Mas a experiência decepcionante de 1954 contribuiu para que desistissem desta opção. Acreditavam que não havia como a voz superar os instrumentos com as limitações eletrônicas da época.
Naquele ano, convidaram Rupiara Ferreira Santos, cantor baiano de voz forte e bonita, para ser o intérprete das músicas. Conseguiram subir a Ladeira de São Cristovão, na Liberdade, cientes que estavam fazendo a maior festa.
A alegria durou pouco. Alguém avisou que não se ouvia voz do cantor. Desligaram o microfone de Rupiara, que sem saber disso, continuou cantando a todo pulmão.
Na cabeça da ladeira, o cantor perguntou a Dodô: “Que tal? Me saí bem?”. Dodô respondeu: “Não”, para tristeza de Rupiara. O trio continuou a desfilar por anos, mas sem o inaudível entusiasmo do seu primeiro cantor.
A voz que faltava
Em 1976, o grupo Novos Baianos resolveu montar um trio elétrico para o carnaval de Salvador. Foi nesse desfile que utilizaram a vocalização nos trios pela primeira vez.
Paulinho Boca de Cantor, que dividiu o vocal com Baby Consuelo, avaliou que a experiência foi “um grande sucesso”. (Jornal do Brasil de 5 de fevereiro de 1978).
Para ter este resultado, utilizaram de uma mesa equalizadora, a mesma utilizada em teatros.
Com este recurso puderam controlar o som produzido pelos instrumentos e deixar a voz em destaque. “Apesar de algumas deficiências, conseguimos dividir o vocal e instrumental, levantando cada um na sua vez”, explicou Paulinho Boca de Cantor.
Os Novos Baianos estiveram no carnaval de Salvador até 1978. Neste último ano utilizaram, além da mesa equalizadora, um engenheiro de som, que passou a morar com o grupo. Mesmo com essa estrutura, que permitia o uso da voz no trio, continuavam a privilegiar a música “instrumentada”, na proporção de três para uma.
A ideia de utilizar a voz nos trios já vinha sendo discutida desde o início da década de 1970, mas o crescente sucesso do carnaval de Salvador recomendava não se mexer no que estava dando certo.
Em entrevista, Moraes Moreira revelou que Gilberto Gil tinha comentado sobre a necessidade de alguma inovação nos trios, que estavam caindo na mesmice, ano após ano.
É provável que a presença dos Novos Baianos, utilizando voz amplificada eletronicamente no seu trio, tenha estimulado Moraes Moreira a também valer-se deste recurso.
Isso aconteceu somente em 1978.
Moreira, que já vinha se aproximando de Armandinho desde 1976, propôs colocar letra numa música de Dodô e Osmar composta em 1958. Doble Morse era um “passo doble” espanhol que tinha acordes parecidos com o som de uma transmissão telegráfica, utilizando o código Morse.
Assim nasceu Pombo Correio. A música fez tanto sucesso que no desfile daquele ano, à frente do trio, tinha um enorme pombo mecânico com asas móveis.
Ao anunciar que Moraes Moreira estaria naquele ano no trio de Dodô e Osmar para cantar Pombo Correio, o Jornal do Brasil, edição de 5 de fevereiro de 1978, estampou o seguinte título: “A voz que faltava ao delírio nas ladeiras baianas”.
Naquele ano em Salvador, 18 trios, 9 fixos e 9 circulando, realizaram um dos melhores carnavais de todos os tempos. Lá estavam os trios Saborosa, Tapajós, Novos Baianos, Marajós e Dodô & Osmar.
O sucesso de Pombo Correio iniciou a transformação do tablado superior do trio elétrico.
Desde então passou a ser um palco onde os cantores foram rapidamente superando a música somente instrumental que dominava os trios.
A Bahia, sem ter esta intenção, agregava ao cortejo festivo dos blocos, a possibilidade de realizar também espetáculos móveis, atraindo não somente os foliões, mas espectadores para os espaços destinados a eles, como arquibancadas e camarotes.
Moraes Moreira foi o cantor símbolo desta mudança e o responsável pelo início de um novo ciclo no carnaval brasileiro.
Faleceu hoje, 13 de abril de 2020, aos 72 anos de idade. Moraes Moreira nos deixou um importante legado musical e foi “voar o mundo” nas asas do seu Pombo Correio.