Vamos por partes!

Por Sérgio Braga Vilas Boas

Antes de começarmos, vamos estabelecer aqui duas premissas:

1- Não se deve seguir adiante olhando para o retrovisor, pois corre-se o risco de colisão com o primeiro obstáculo. Todavia o passado entra para a história, e é aconselhável conhecê-la, a história. Pode evitar desastres.

2 – O que for dito aqui não parte de um observador distante, isento, e que por autopiedade, ou sei lá o quê, concede-se o direito ao “eu não participei disso”. Eu participei e participo da vida política do meu pais, com divergências e convergências, e sempre à esquerda.

Dito isso, seguimos.

A despeito do Brasil não ser uma escola que reflita pensamento acerca de economia política, ou sirva de referência, antes pelo contrário, recepciona ideias, que por aqui, em geral, chegam com certo atraso e muitas vezes deturpadas. Isso não quer dizer, por justiça, que não tenhamos tido pensadores na área. Sim, tivemos. Celso Furtado, por exemplo, foi um dos melhores.

Todavia os partidos políticos, modo geral, apresentam um padrão semelhante de comportamento ao de seus congêneres na Europa e EUA. Concentram-se muito mais, ou totalmente, na próxima eleição.

Isso que era notório em seu início histórico, em que o fim era a eleição e os partidos apenas um instrumento ou meio, parece ser a ideia que ainda reside na compreensão da maioria das pessoas, mesmo depois de se tornarem as organizações burocráticas contemporâneas, e que, em tese, defendem uma ideia de sociedade, com conceitos econômicos, civis, políticos, etc.

Também é evidente, que não se pode condenar os partidos por pretender ascender ao poder político – mesmo tendo que o dividir com o poder econômico real, ficando inclusive com a parte menor, ou até lhe sendo subserviente. Sem nenhum poder se está fora do jogo decisório/burocrático próprio de governos, não obstante serem livres as ruas para quem ousar ocupá-las.

Mas, a questão principal é: ocupar os espaços de poder político para quê? Governar para quê e para quem?

A resposta a essa pergunta é que talvez não tenha sido encarada de fato pelos partidos políticos em redor do mundo, e no Brasil. As respostas oferecidas hoje, são quase sempre as mesmas oferecidas em algum lugar no passado, até que haja algum movimento capaz de exigir novas posturas, e que extrapole os partidos em si. Isso não quer dizer que movimentos grandes tenham o poder de forçar mudanças significativas. Pois as mais das vezes esses movimentos são capturados pela superestrutura do capitalismo em seu próprio favor.

Na minha visão, grosso modo, houve momentos históricos significativos que propulsionaram o consenso do pós-guerra (2ª Grande Guerra), com surgimento do Keynesianismo, ou da Social Democracia, ou do dito Estado do Bem-Estar Social. A Primeira Grande Guerra (1914-1918); a pandemia de 1918; a Revolução Russa em 1917; a quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929; e a 2ª Grande Guerra em seguida. Esses movimentos abalaram o consenso liberal que foi obrigado a entregar anéis para não perder os dedos. E, diga-se de passagem, foi o momento de maior progresso, em todos os sentidos, que apresentou o mundo, na história recente, principalmente a Europa e os EUA.

E ainda, nunca é demais lembrar também, que o Manifesto Comunista de 1848 e a crítica ao capitalismo produzida por Marx, além das óbvias influencias sobre a Revolução Russa, teve lá seu pedacinho na revisão liberal proposta por Keynes, e por Roosevelt através do “New Deal” americano pós quebra da Bolsa – que inclusive ajudou Lord Keynes na construção da sua tese.

Mas como diz a dupla sertaneja Vitor & Léo: “as borboletas sempre voltam”. Já em 1944, com a publicação de “A Caminho da Servidão”, Friedrich Hayek, questiona e coloca no mesmo balaio o Socialismo e o Nazismo, afirmando que toda e qualquer forma do que ele classificava de coletivismo levaria irremediavelmente à extinção das liberdades. Note-se, que à época, pouco ouvido se deu a Hayek. Todavia em 1974, nosso amigo foi agraciado com o prêmio Nobel de Economia.

Na década de 1960 o consenso Social Democrata já não tinha o mesmo “bafo” na Europa e nos EUA. Os questionamentos oferecidos pela dita “Escola Austríaca”, e pela “Escola de Chicago” (da qual Paulo Guedes é filho fiel), no mesmo sentido de Hayek, agora chegava a dizer que o consenso Social Democrata criara uma padronização de comportamento social; de mobilidade urbana; de moradia popular; etc. E que isso interferia na capacidade do ser humano de tomar decisões acerca da sua própria vida. Enfim: o Estado era opressor!

E não é que ganhou adeptos mundo afora! Tanto por parte dos “czares” do capital, quanto pelos jovens, que em tese estavam cansados de ver suas liberdades “supressas”, como por grupos de trabalhadores, tradicionais apoiadores da Social Democracia.

A solução seria reduzir o Estado à sua insignificância. Lembremos Margareth Thatcher: “Não existe essa coisa de sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos. ”A Thatcher seguiu Ronald Reagan nos EUA. A partir dali os sociais democratas foram cedendo aos poucos à ofensiva Liberal.

Note-se os diferentes objetivos entre “O Capital” e o povo, a despeito de ambos “concordarem” acerca de diminuir a ação do Estado sobre os indivíduos. O óbvio objetivo do primeiro sempre foi a captura do Estado em seu único e exclusivo favor.

E adentramo-nos às décadas seguintes sob a égide do “novo consenso liberal”. Então seguiu-se concentração de riqueza, desregulamentação financeira, aumento da pobreza, sufocamento da igualdade de oportunidades, etc. Necessariamente a supressão da liberdade individual veio a reboque, pois de que liberdade estava-se falando? Daquela entre não ter, e não poder ter? Daquela entre não ser e não poder ser?

Por aqui, parece que na contramão do mundo, surge o Partido dos Trabalhadores na década de 1980 — partido de massas, fruto principalmente das lutas dos trabalhadores contra a ditadura e por condições dignas de vida — e se apresenta como vanguarda em sequência aos já decanos Partidos Comunistas.

Em 2002, o PT numa aliança com setores da burguesia nacional, e cedendo a consensos liberais acerca da manutenção de determinados pilares econômicos que vinham do governo anterior, vence as eleições gerais.

Nos anos seguintes constrói uma expansão jamais vista na capacidade de consumo do mercado interno, transformando em consumidores classes sociais periféricas acostumadas a migalhas, e leva a sério a Carta Magna de 1988, procurando cumprir seus comandos de inclusão social em todos os aspectos. Passa bem pela crise econômica de 2008, apresentando certo vigor.

Enquanto o “pirão” foi suficiente, a lua de mel durou e jogou para debaixo do tapete algumas questões importantes para que pudéssemos seguir adiante enquanto nação. Necessitávamos de uma reforma tributária que mudasse o modelo regressivo e de mão pesada sobre o trabalho e a produção, para um modelo contemporâneo, progressivo e que focasse a renda e o patrimônio, para podermos, inclusive, aprofundar o consenso social da Carta de 1988, entre outras questões.

Quando a tal crise internacional começou a se agravar a afetar o Brasil, parece que tudo desabou como num passe de mágica. Em “A Valsa Brasileira – do Boom ao Caos”, Laura Carvalho aponta bem o espaço da ruptura. Não havia mais como conciliar os direitos sociais consagrados pela Constituição com a lucratividade na crise. Ou direitos, ou empregos. Ali houve o divórcio. Isso começou em 2012. Os instrumentos foram vários.

Lembremos que em 2010, o furacão “Primavera Árabe”, já havia varrido o norte da África. Aumentava a emigração de africanos para o continente europeu. Os partidos de extrema direita começam a crescer questionavam a globalização na Europa; e nos Estados Unidos os republicanos do “Tea Party” continuavam na sua saga ultraliberal e xenófoba, todavia com conceitos que agradavam o cidadão americano médio que viu sua renda desabar fruto da globalização, e da diminuição do emprego industrial. Lembremos que na Itália governava o “pictórico” Berlusconi.

Bem, daí em diante houve uma chuva bem-sucedida em muitos países e nem tanto em outros (principalmente os que conseguiam manter algum padrão satisfatório de bem-estar social) de questionamentos à ordem ideológica, econômica, política e legal, o tal “stablishment”.

Tivemos Macron na França, Trump nos Estados Unidos, a queda dos trabalhistas na Inglaterra, e mais tarde Bolsonaro no Brasil. Nesses países vigorava alguma coisa em torno do centro, mais à esquerda ou mais à direita.

O que parece é que o consenso liberal, de mundialização financeira, observadas as características de cada país, caiu em descrédito, pois também não ofereceu as saídas prometidas.

Há uma espécie de simbiose entre a exaltação do indivíduo e sua autodeterminação, conceitos ultraconservadores acerca do comportamento social, desregulamentação total e liberdade econômica, exacerbação do conservadorismo religioso, repúdio contra a invasão cultural externa e globalização econômica que retira e tolhe empregos e deteriora os alicerces das tradições dos locais. Contudo, o que se percebe é que os questionamentos são sempre aos partidos e aos políticos. Nunca ao Capital, que permanece sem perdas qualquer que seja a situação. Ganha-se mais ou menos, mas sempre ganha-se.

Não é incomum jovens, mundo afora e no Brasil, crerem na possibilidade da “democracia sem povo”, em que uma casta de burocratas concursados e pretensamente “preparados tecnicamente”, desinfestados da corrupção inerente à política e aos partidos, administraria um Estado linfático, livre do populismo e capaz de aplicar a austeridade sem culpas.

Então, desenvolveu-se um senso comum, que identificou algumas “verdades”, umas conjunturais, outras estruturais.

Umas por serem próprias da superestrutura do capitalismo, e outras por ter havido um enorme esforço dos agentes nesse sentido, como: o poder judiciário garante justiça apenas para os ricos; os partidos são clubes de interesses difusos que nunca são os do povo; a política é podre, um manancial de corrupção; os poderes encerram esse canalhismo, e são completamente desvinculados da vida real.

E o diabo é que o Capital parece estar no comando da formação desse senso comum, mesmo sendo a causa principal do desastre.

A despeito das tentativas de compreender esse enredo complicadíssimo, dos pedidos de “autocrítica”, de dedos para todo lado apontado fatos esse ou aquele como decisivos para termos chegado onde chegamos, não creio em determinados fatos, mas numa sequência histórica, cuja compreensão ou percepção não houve, ou se houve foi minimizada, ou até mesmo desprezada.

Agora parece-nos ter chegado um momento histórico em que há uma espécie de imbricamento, entre a pandemia de 1918 e o “Crash” de 1929, a crise econômica que alavancou o nazismo e o fascismo e a sua própria ascensão.

É absolutamente normal – e necessário – numa quadra dessas surgirem apelos dos mais diversos setores da sociedade por unidade no combate ao maior de todos os pesadelos: o autoritarismo, seja lá qual for a sua cara.

Assim como é também normal surgirem os que levantam os alertas do tipo: “olha lá o que se vai fazer!”. “Eles compactuam com tudo aquilo que abominamos e conspiraram contra nós!”. “Não podemos entrar no primeiro ônibus que aparecer!”.

Sinto discordar.

Um dia em Brasília, meu então gerente, José Roberto Mendes do Amaral, recebeu olhares risonhos e um lânguido: hummm! O motivo era o brinco que ainda usa em uma das orelhas. José, mirou o “provocador” e respondeu – não me lembro exatamente do que disse, mas me lembro do significado: “não é o brinco que determina o que eu sou, mas eu é que determino o que o brinco é, porque eu sei exatamente o quê, e quem sou!”.

Por fim, se sabemos exatamente o que somos, o que queremos para o Brasil; se o nosso comportamento leva a todos crerem nisso; se sabemos para quê e para quem queremos governar de novo; se não temos dúvidas dos fundamentos e dos princípios que nos guiam, não vejo empecilho em nos juntar a “eles” para derrotar o cara do autoritarismo. Depois não teremos problemas, se sabemos o que somos.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

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