O micróbio lento de Viçosa e os valentes que não temem a própria morte

Edberto Ticianeli – jornalista

Estávamos no final de 1977 ou no início de 1978 e uma delegação de universitários percorria alguns municípios alagoanos em busca de apoio dos prefeitos para o estabelecimento de Casas dos Estudantes na capital.

Eram as primeiras iniciativas do movimento estudantil após o período de maior repressão da ditadura militar.

A comitiva, que viajava a bordo de um velho fusca, era formada por Edberto Ticianeli, Aldo Rebelo e Júlio Bandeira.

O primeiro município visitado foi Viçosa, coincidentemente, terra do Aldo Rebelo.

No final da tarde, depois de uma boa e promissora conversa com o prefeito José Manoel da Silva, o popular Dinha, o grupo foi para a Sorveteria do Zezo, que vendia gelados (sorvetes e picolés) e geladas (cerveja).

Optaram pelas geladas e por lá permaneceram até o fim da noite. Os complementos vinham do Bar e Sinuca do Wilson, estabelecimento que se situava do outro lado da rua, em frente à esquina famosa da Praça Apolinário Rebelo.

Lá para as tantas, foram avisados que o Wilson ia fechar o bar e que era hora de se fazer os últimos pedidos.

Ticianeli declarou a intenção de pedir o sanduíche de pernil e perguntou aos presentes se mais alguém ia acompanhá-lo no lanche. Ninguém se manifestou.

Alguns minutos depois, trouxeram o sanduíche, devidamente partido ao meio. Imediatamente, um viçosense amigo do grupo apanhou um dos pedaços e ao mordê-lo, a carne caiu ao chão. Ágeis mãos a recolocaram no pão.

Júlio Bandeira, então ainda um estudante de Medicina, fez uma breve preleção sobre a ação danosa de certos micróbios e orientou o cidadão a não ingerir aquela carne que já mastigava.

A resposta foi rápida: — Doutor, fui muito ligeiro. Não deu tempo do micróbio pular em cima da carne. Esses bichinhos por aqui são muito lentos.

E engoliu o que mastigava.

Conto essa história como testemunho do quanto nós somos descuidados com as nossas vidas.

Creio que nós, brasileiros, levamos ao extremo o trecho do hino nacional que exalta a bravura e o destemor quando a justiça corre riscos, sacrificando a vida, quando preciso, para mantê-la.

Esse desprendimento nos leva a assumir posturas incompreensíveis, a exemplo da reação que tivemos ao uso do cinto de segurança.

Esse importante utensílio de segurança veicular, que foi inventado em agosto de 1959 pelo engenheiro sueco Nils Bohlin, da Volvo, somente passou a ser adotado no Brasil em 1994.

Várias campanhas foram realizadas para convencer aos transportados por automóveis que o cinto salvava vidas. Não funcionou. Foi preciso punir com multa os que não tinham medo da morte ou das sequelas graves em acidentes.

O cinto de dois pontos passou a ser obrigatório no Brasil em 1994 e, três anos depois, foi adotado o cinto de três pontos no banco dianteiro.

Estudos apontam que este equipamento conseguiu reduzir em 90% as lesões produzidas por acidente.

Mas o brasileiro fez discurso contra ele e muita confusão até que o seu uso fosse aceito. Atualmente, são raras as pessoas que duvidam da sua eficácia.

Também não está sendo fácil conscientizar os motoristas que a ingestão de bebida alcoólica antes de dirigir pode aumentar o número dos acidentes de trânsito, colocando vidas em risco.

As ações da chamada “Lei Seca”, que punem duramente os flagrados em desacordo com as orientações, já começam a despertar consciências e a colher resultados positivos.

Mais uma vez a defesa da vida teve que ser imposta. Parece um absurdo? Não se considerarmos que o brasileiro “não teme a própria morte”.

Atualmente, com a pandemia do Covid-19, essa coragem irresponsável também se manifestou.

Não se teme a morte que ronda a família, os amigos e os vizinhos. Sabe-se que o amigo perdeu a vida por causa do vírus, mas se continua a frequentar ambientes em que a possibilidade de transmissão é grande.

O pior é que muitos acreditam que adquiriram imunidade por se automedicarem com remédios que não protegeram o familiar falecido há poucos dias.

Nem a morte como testemunha da ineficácia de certos tratamentos impõe temor aos nossos irmãos.

Não abordarei os argumentos políticos que poderiam sustentar as posturas descuidadas com a saúde por considerá-los mais absurdos ainda.

Prefiro somente clamar pela defesa da vida como primado de qualquer ação consequente que seja adotada.

Isso evitará as mortes? Acho que alguns, mesmo tomando todos os cuidados, mas não vão conseguir escapar da letalidade provocada pelo vírus. É um mal ainda sem cura.

Mas esta constatação não justifica que se continue a jogar roleta russa com a vida.

No início do século XX fomos forçados a receber a vacina, depois fomos obrigados a usar o cinto de segurança e a não beber antes de dirigir. Só aceitamos salvar nossas vidas na marra, na multa ou sob ameaça de prisão.

Foi isso que a nossa história testemunhou. Vamos aprender com ela?

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

Um comentário em “O micróbio lento de Viçosa e os valentes que não temem a própria morte

  • 8 de junho de 2020 em 12:29
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    Excelente. Gratissimo meu amigão.

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