Sinhazinha, pratos e quintais

Edberto Ticianeli – jornalista

Ela está sempre lá. Sentada numa cadeira simples sob a proteção de um pequeno alpendre erguido no fundo daquela velha casa.

Não desvia os olhos do quintal. Mão no queixo, contempla algumas bananeiras e o coqueiro anão que valentemente disputa espaço com a goiabeira, já derrotada e desfolhada.

Mesmo à distância noto que seu rosto é altivo, como se olhasse de cima para baixo, da casa grande para o pátio do engenho.

Suas roupas pesadas cobrem um corpo magro, pequeno e já bastante encurvado. Nos poucos momentos que se levanta, percebo o caminhar cansado, de passos curtos.

Decido me referir a ela como Sinhazinha. Lembranças de uma tia lá de Pão de Açúcar.

Vejo-a da janela do meu apartamento e acredito que não me vê. Naquela hora da tarde, as janelas envidraçadas do prédio devem refletir a luz do sol, que já iniciou seu passeio diário sobre a Lagoa Mundaú.

— Por que olha tanto para o quintal, Sinhazinha? — atrevidamente puxo uma conversa imaginária com ela.

— Não olho o quintal. Tento ver o futuro, mas já não enxergo bem. O bordado acabou com a minha vista.

— E o passado? Não mergulha nele de vez em quando? — provoco.

— Quando quero lembrar o que passou, vou para a janela da frente da casa. É de lá que vejo o bonde do Jacutinga puxado a burro passando em direção à Ladeira da Catedral. Da sala sinto os perfumes das mocinhas da vizinhança, que logo cedo se encaminhavam para a missa dominical na Capela de São Gonçalo.

Sem tirar os olhos do quintal, continuou.

— Da janela ouvia os tambores do xangô da Rua Saldanha da Gama ou dos congos da festa de São Gonçalo. Acompanhava com os olhos as pretas com seus filhos passando pela Rua Comendador Palmeira, equilibrando potes d’água na cabeça e vindo do chafariz da Rua do Zeiga.

Depois de falar por quase meia-hora sobre suas reminiscências, levantou a cabeça, olhou na minha direção e concluiu:

— Na frente da casa vejo o passado, com alegrias e tristezas. No quintal medito sobre o pouco tempo que me resta.

Vi seus olhos procurando o infinito e resolvi não perguntar mais nada. Suas palavras me deixaram pensativo.

Calei-me também porque já estava cansado de ficar em pé ouvindo-a. Fui lavar os pratos.

Sinhazinha fala demais.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

Um comentário em “Sinhazinha, pratos e quintais

  • 2 de outubro de 2020 em 08:24
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    Gostei, Ticianeli. Tenho acompanhado seus escritos. Os homens são valorizados e reconhecidos depois que partem mas Alagoas sempre será reverenciada à sua pessoa pelo Grande Historiador que és. Um abraço.

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