O Quarto Estado de Giuseppe Pellizza da Volpedo

Edberto Ticianeli – jornalista

Os que viveram os embates políticos dos anos 70 devem lembrar da reprodução de um óleo sobre tela que ilustrava jornais, revistas e panfletos. Chegou mesmo a ser impresso em um cartaz de grandes proporções. Representava uma marcha de trabalhadores tendo à frente dois homens e uma mulher com seu filho em um dos braços.

Obra do italiano Giuseppe Pellizza — a tela original mede 293 cm X 545 cm —, começou a ser produzida em 1891 na cidadezinha de Volpedo, no norte da Itália. Fica na região de Piemonte que tem como capital Turim.

O jovem pintor, que nasceu em 1868 em uma família de pequenos agricultores, teve contato com as ideias socialistas e pretendia valorizar as lutas dos trabalhadores de sua cidade após vê-los em uma manifestação de protesto.

Empolgado com a cena, anotou: “A questão social impõe-se; muitos estão dedicados a ela e estudam esforçadamente para resolvê-la. Também a arte não deve ser estranha a este movimento em direção a um objetivo que ainda é desconhecido, mas que se sente que deve ser muito melhor do que as condições atuais”.

Em 1892 concluiu o esboço que ficou conhecido como Embaixadores da Fome. Três anos depois produziu outra versão desta mesma cena e com o mesmo nome. Era um desenho a giz e carvão vegetal em papel pardo.

Embaixadores da Fome

Sobre essa obra, Pellizza escreveu:

“Os embaixadores são dois e avançam sérios na praça para o palácio do senhor que projeta a sombra a seus pés […] avança a fome com as suas múltiplas atitudes — são homens, mulheres, idosos, crianças: todos os que têm fome vêm reclamar o que é de direito — serenos e calmos, apesar de tudo, como que a exigir nem mais nem menos do que aquilo que merecem — eles sofreram tanto, é chegada a hora da redenção, assim pensam eles e não o querem obter pela força, mas com razão — alguém poderá levantar o punho em ameaça, mas a multidão não o acompanha, esta confia nos seus embaixadores — homens inteligentes […] uma mulher que corre mostrando a criança magra, uma outra, um terceira, está o chão e tenta em vão alimentar o bebê exausto com os seios estéreis — outra grita maldições”.

Torrente

Ainda em 1895, Pellizza iniciou um novo estudo sobre o mesmo tema, desta feita utilizando vários desenhos em cartões e fotografias dos seus modelos.

Assim surgiu Torrente em julho de 1895. Há mudanças na paisagem e a linha dos personagens de frente recuam, permitindo a inserção de outras figuras. Pellizza pretendia destacar o povo.

Torrente

Nesta obra, o autor escreveu um poema na margem da tela:

Você ouve… passa a Torrente da humanidade
As pessoas correm a engrossá-la.
Ficar é crime.
Filósofo deixa seus livros e vai para a sua
frente e a guia com seus estudos.
Artista vai com ele para aliviar suas dores.
Operário deixa a oficina em que há tanto o trabalho te
consome.
E que ele traga outro.
E você, que fazes?
Leva a esposa e o filho para engrossar
a Torrente da humanidade sedenta por justiça
— daquela justiça pisoteada até aqui
e que agora é uma miragem brilhante ao longe.

S’ode… passa la Fiumana dell’umanità
genti correte ad ingrossarla. Il restarsi è delito
filosofo lascia i libri tuoi a metterti alla sua
testa, la guida coi tuoi studi.
Artista con essa ti reca ad alleviarle i dolori colla
operaio lascia la bottega in cui per lungo lavoro ti
consumi
e con essa ti reca
e tu chi fai? La moglie il pargoletto teco conduci
ad ingrossare
la fiumana dell’Umanità assetata di
giustizia — di quella giustizia conculcata fin qui
e che ora miraggio lontano splende.

Giuseppe Pellizza disse que esta sua obra era “uma tentativa minha de elevar-me um pouco acima da vulgaridade das pessoas que não estão informadas de uma ideia fundamental. Tento a pintura social“.

O Quarto Estado

Entre 6 e de 10 de maio de 1898 ocorreram várias manifestações na Itália contra o aumento dos preços dos produtos alimentícios. Em Milão houve violenta repressão policial comandada pelo general italiano Fiorenzo Bava-Beccaris.

Foram mortos pelo menos 80 manifestantes. Dois soldados também tombaram sem vida. Os feridos foram mais de 450. Esse massacre fez crescer o descontentamento popular. O governo, militares e a monarquia sofreram enormes desgastes políticos, gerando uma crise institucional.

Indignado com o massacre, Pellizza, que também não havia ficado satisfeito com o seu Torrente, resolveu retomar os estudos sobre um quadro em homenagem à luta do “proletariado italiano”.

O resultado ficou registrado em “A Jornada dos trabalhadores”, cuja técnica foi assim exposta ao seu amigo Mucchi:

“Agrada-me a teoria dos contrastes, a dos complementares e da divisão da cor de acordo com o propósito no meu trabalho. Toda a ciência sobre a luz e as cores me desperta um interesse especialː por ela posso ter consciência do que faço. […] Para tal, são as tentativas que faço no presente; e, na esperança de conseguir o melhor resultado, faço estudos preliminares para ter bem em mente o que quero fazer; depois desenho os cartões para decalcar na tela, sobre esta aplico a cor de preparação, após o que tento terminar todos os detalhes do quadro verdadeiro. E no resultado não devem ser nem tudo pontos nem tudo traços, nem tudo massa; e nem tudo liso, ou tudo áspero; mas variado como são variadas as aparências dos objetos na natureza, e atingir com as formas e cores “uma harmonia falante” (esta seria a meta suprema), uma ideia na mente ou um sentimento no coração”.

A pintura da Jornada dos Trabalhadores durou três anos. Foi concluída em 1901, quando recebeu novo título: O Quarto Estado.

O Quarto Estado

O nome surgiu a partir dos termos utilizados na Revolução Francesa, quando a Burguesia derrotou a Nobreza (Primeiro Estado) e o Clero (Segundo Estado), passando a ser o Terceiro Estado. A vitória do Proletariado seria o Quarto Estado.

A obra foi vista publicamente pela primeira vez na Exposição Internacional de Arte Decorativa Moderna/Quadrienal de Turim de 1902. Pellizza expôs também Il tramonto.

O vencedor foi o esboço de David Calandra para o Monumento ao príncipe Amedeo.

Pellizza, além de não vencer, também não vendeu o quadro como esperava que acontecesse. Enfrentava grave situação financeira.

A crítica positiva, uma quase premonição, partiu de Giovanni Cena após a mostra. Ele escreveu que o Quarto Estado “é algo que vai permanecer e sem medo do tempo, porque o tempo o vai beneficiar“.

Para surpresa do autor e dos críticos, o sucesso da obra veio nas páginas da imprensa socialista e em várias reproduções gráficas.

Em 1903 estava na revista milanesa Leia-me! Almanaque para a Paz, ilustrando artisticamente artigo de Edmondo De Amicis.

O jornal União também a reproduziu na edição de 1º de maio de 1903. A Vanguarda Socialista fez o mesmo no impresso de 1º de Maio do ano seguinte.

Voltou às páginas, em 1905, no Avanti! Della Domenica, histórico jornal do Partido Socialista Italiano.

Em 1906 foi utilizado como cartão-presente do jornal de Voghera, O Homem que Ri. Era dirigido por seu amigo Ernesto Majocchi, que agradeceu publicamente a Pellizza.

O Quarto Estado foi inscrito em outras exposições, mas sempre era recusado. Os curadores temiam a repercussão da mensagem revolucionária do quadro.

A única vez que o artista viu sua obra exposta foi na Sociedade Promotora de Belas Artes em 1907, em Roma.

Nos primeiros meses daquele ano Pellizza perdeu seu filho recém-nascido. Em seguida morreu sua mulher. No dia 14 de junho optou por deixar a vida e se enforcou em seu ateliê. Tinha 39 anos de idade.

O Quarto Estado somente foi reconhecido como uma grande obra no período do Biênio Vermelho, logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, quando o desemprego em massa e a instabilidade política fez crescer a influência socialista e anarquista nas organizações dos trabalhadores

O quadro foi exposto na Galeria Pesaro, em Milão. Lá, o crítico de arte Guido Marangoni ficou impressionado com a obra e promoveu uma subscrição pública para comprá-lo.

Foi adquirido por 50 mil liras e colocado em exposição na Sala de Baile do Museu do Castelo Sforzesco.

Após o período revolucionário do Biênio Vermelho, aconteceu a violenta reação dos camisas negras fascistas, que culminou em 1922 com a Marcha sobre Roma liderada por Benito Mussolini. Este movimento o levou a ser o primeiro ministro da Itália.

Nos anos 30, Mussolini e seus seguidores jogaram o quadro em depósito, de onde somente foi resgatado na década de 1950. Voltou a ser exposto no salão do Palácio Marino, que tinha reconstruído após os bombardeios de 1943 na Segunda Guerra Mundial.

Foi durante a gestão do prefeito de Milão, Antonio Greppi, (de 7 de abril de 1946 a 25 junho de 1951) que o crítico Corrado Maltese jogou luzes novamente sobre a obra, classificando-a como o “monumento maior que o movimento operário se podia vangloriar na Itália”.

A partir de então outros críticos voltaram suas atenções para a pintura, que começou a ser convidada para exposições.

O cinema também homenageou o Quarto Estado ao utilizá-lo como pano de fundo aos créditos de abertura do filme “1900″, dirigido por Bernardo Bertolucci em 1976.

O quadro esteve no Palácio Marino até 1980. Depois foi transferido para a Galeria de Arte Moderna de Milão. A partir de 2011 está no Museu do Novecento.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

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