Escolas de samba e o espetáculo no mundo da competição
Edberto Ticianeli
No rescaldo das cinzas carnavalescas, a polêmica que dominou as redes sociais foi o discutível patrocínio que a campeã, Escola de Samba Beija-Flor, recebeu do ditador da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, que há 35 anos comanda o país africano. O enredo da campeã foi: “Um Griô conta a história: um olhar sobre a África e o despontar da Guiné Equatorial. Caminhemos sobre a trilha de nossa felicidade”.
Sem diminuir a importância de se discutir os interesses dos patrocinadores dos desfiles milionários das escolas de samba, que podem receber apoio de bicheiro, traficante, político, ditador ou Rede Globo, destaca-se nesta polêmica o envolvimento emocional de alguns internautas, assumindo claramente a postura de torcedor.
Em Alagoas, vários comedores de sururu manifestaram preferência por alguma escola de samba carioca. A pergunta que surge destas manifestações é: por que escola de samba tem torcida? E pior: por que uma escola de samba carioca tem torcida em Alagoas?
Sem pretensão de responder a questões tão complexas, no máximo pode-se apresentar algumas pistas.
Carnaval festa X Carnaval espetáculo
Independente das incertezas sobre a origem do carnaval e das imprecisões históricas sobre a sua evolução até os dias de hoje, pode-se afirmar que o carnaval é uma festa. Segundo o historiador Hiram Araújo, “O carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a vida festiva”.
É uma festa de rua e assim atravessa séculos, vencendo até a teimosia da igreja católica, que repudiava o carnaval. Mas, em pleno capitalismo industrial, o carnaval começa a sofrer mudanças profundas. Assim, no Brasil do final do século XIX e início do XX, as ruas das modernas cidades, que desde o século XVII recebia os brincantes do carnaval, se transformam em espaço controlado pelo poder, que estabelece normas de acordo com os seus interesses políticos, sociais e econômicos.
As novas cidades negam espaço ao anárquico e “sujo” entrudo, com suas seringas e limões-de-cheiro. Ele é proibido, dando lugar ao confete, serpentina e lança-perfume. Surgem nas novas avenidas os desfiles das sociedades, ranchos e dos cordões carnavalescos – que deram origem aos blocos -, além de criar condições para receber o corso. Os bailes carnavalescos em clubes se multiplicam.
Entretanto, o carnaval como festa começa a ser ameaçado quando, em 1913, os ranchos carnavalescos do Rio de Janeiro abandonam os seus tradicionais espaços de desfile e se deslocam para o Passeio Público, onde, em frente ao Jornal do Brasil, foi montada uma comissão julgadora para definir quem receberia um troféu de bronze oferecido pela Cervejaria Hanseática. Esta inovação partiu de três cronistas carnavalescos: Vagalume, Miúdo e Picareta.
A partir de 1930, com Getúlio Vargas no poder, e já com a presença dominante das escolas de samba, os desfiles continuam a receber prêmios, mas sofrem descontinuidade. Somente em 1935 é que Vargas baixa um decreto regulamentando os desfiles, tornando-os oficias. Recebiam subvenções, mas tinha que adotar enredos que traduzissem os objetivos políticos do governo federal. Nas décadas de 60 e 70, a classe média desembarca nas escolas de samba provocando a “revolução estética”, e nos anos 80 acontece a “revolução econômica”, com as escolas de samba sendo adequadas ao tempo e as exigências das televisões, para quem se apresentam em troca de grandes aportes financeiros.
Competição gera espetáculo
Assim, 102 anos após um Picareta, um Vagalume e um Miúdo terem investido numa competição, as escolas de samba deixaram de ser cordões carnavalescos, uma festa do povo, e se transformaram numa engrenagem complexa que envolve muita grana e pouca espontaneidade, característica fundamental para a festa.
O pior é que esse modelo de carnaval como competição se espalhou pelo país, provocando o empobrecimento do carnaval como festa. Felizmente, nem todo mundo copiou isso, e o carnaval como festa resistiu e hoje experimenta um crescimento. Os blocos proliferam em todos os recantos do Brasil, sem nenhuma preocupação em serem os maiores ou melhores. Se organizam para brincar o carnaval. O brincante volta a ser o personagem central do carnaval.
Um bloco de brincantes é muito diferente de um grupo que se organiza para ganhar um prêmio ou subvenção pública. Nestes, tem que ter muito ensaio e produção, suprimindo a espontaneidade. Uma escola de samba do Rio de Janeiro tem tempo de desfile determinado, todos os seus movimentos são ensaiados e não se pode beber durante o desfile. Isso é uma festa?
Por estas razões, não torço por escola de samba e nem acho relevante saber se os patrocinadores são bicheiros, traficantes, políticos, ditadores ou rede de televisão. Preocupo-me mais em saber quantos blocos carnavalescos estão nas ruas, criando momentos de pura festa, mantendo o carnaval como um evento para o riso, sem as tensões de ter que vencer alguém numa disputa. Torço mesmo é para que o fim das competições aconteça também na vida normal dos cidadãos. Vamos FESTEJAR o carnaval e humanizar a vida. Chega de ver o próximo como alguém a ser vencido.