São Cristóvão do caminhão sujo

Edberto Ticianeli 

Da mesma forma que se comemora o Bom Jesus dos Navegantes com procissões de embarcações, houve uma época em Maceió que os motoristas homenageavam São Cristóvão com uma procissão de automóveis, principalmente com a participação de carros de aluguel e caminhões.

Ainda criança, fui testemunha de pelo menos um evento desses no centro de Maceió. Lembro dele porque me trouxe sérios problemas.

Tinha somente oito anos de idade e ainda morava no Beco São José (Rua Tibúrcio Valeriano, 198, fundos).

Recordo que no início da noite de 25 de junho de 1963, minha mãe aprontou os filhos e saímos todos vestindo as melhores roupas.

Andamos pela Rua da Alegria até chegarmos na esquina com a Rua do Livramento, onde nos postamos na calçada do Foto Fon.

O interesse do meu pai não era religioso. Nesse dia, o Sindicato dos Motoristas procurava demonstrar força levando a maior quantidade possível de automóveis e de pessoas para as ruas.

“Seu” Gilberto estava ali com a família por questões políticas, para apoiar a “carreata” daqueles trabalhadores.

Eu não tinha a menor ideia do que acontecia, mas estava contente em usar uma bermuda branquinha. A camisa também era especial, de linho marrom claro, só usada em ocasiões especiais.

Tinha muita gente nas calçadas e era enorme a quantidade de veículos vindo da Praça Deodoro em direção à Rua do Comércio.

Passavam os caminhões, a maioria deles responsável pelo transporte de açúcar para o Porto de Jaraguá, e os “carros de praça”, com seus motoristas, quase todos conhecidos por seus nomes.

Mas logo minha paciência foi embora. Era repetitivo. Ali não tinha nada para atrair a atenção de uma criança. Fiquei inquieto.

Já estava me preparando para reclamar, quando parou na nossa frente um caminhão transportando uma imagem que imediatamente me chamou a atenção. Era o São Cristóvão, fui informado por minha mãe.

Ela contou então a história do santo católico que transportava pessoas nas costas na travessia de um rio. Num determinado dia, colocou um menino no ombro e à medida que caminhava nas águas, o peso dele ia aumentando, como se estivesse carregando o mundo nas costas.

Fiquei impressionado com a história. Passei a olhar com mais interesse a imagem do homem carregando uma criança enquanto o caminhão continuava parado.

Era muito diferente das imagens que conhecia de santos nas igrejas, sempre com expressões angelicais e tristes.

Aquele santo era diferente. Tinha movimento e lembrava um personagem das Viagens de Gulliver, cuja história acabara de conhecer em um dos livros do Sebo que meu pai tinha na Rua 2 de Dezembro.

O caminhão avançou mais alguns metros e parou novamente. Foi quando percebi que ele estava com as grades arriadas. Era um grande tablado e não tinha ninguém sobre ele. Com a exceção do São Cristóvão, fortemente amarrado à grade frontal da carroceria.

Não pretendia me aproximar do santo, mas aquele espaço acessível pelas grades, transformadas em verdadeiras escadas, me convidavam.

Sem ser notado, escapuli do grupo familiar e numa fração de segundos já estava sentado na lateral do caminhão, alegre e balançando as pernas.

Aos poucos percebi que ninguém mais olhava para o santo, mas sim para mim. Além disso algumas pessoas falavam comigo em tom de advertência. Fiquei espantado. Não entendia o que provocava aquelas expressões alarmadas em seus rostos.

Notei então que minhas mãos estavam pegajosas. Olhei para elas espalmadas e tomei um choque: estavam completamente sujas por uma espécie de graxa preta. Minha roupa estava malhada de preto como o couro de uma girafa.

Meu rosto — vi depois — também apresentava nódoas escuras das sobras de açúcar, óleo e graxa que por anos aquele veículo transportou.

Sabendo do desastre que era estragar roupa, olhei na direção onde estariam meus pais, mas eles já estavam na minha frente me pegando para descer dali.

Quando fui levantado no ar, pensei ainda que seria carregado no ombro do “seu” Gilberto, como na história do menino mais pesado que o mundo.

Não fui por dois motivos: os fundos da bermuda eram duas grandes bolas pretas, impedindo o contato com qualquer coisa que quisesse continuar limpa, e meu pai não estava naquele momento pensando exatamente como um santo.

Perdi a conta dos croques e puxões de orelha que recebi na volta para casa.

No caminho, pensava no azar que tive. Deixei de passear de caminhão ao lado do São Cristóvão e perdi também minha melhor roupa. Ganhei somente galos na cabeça e orelhas vermelhas.

Durante anos, sempre que via a imagem do santo padroeiro dos motoristas, olhava para as mãos e coçava a cabeça.

Não foi bom o meu primeiro contato com São Cristóvão.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

4 comentários em “São Cristóvão do caminhão sujo

  • 8 de janeiro de 2021 em 02:21
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    No altar da Capela da Santa Casa tem um São Cristóvão.

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  • 8 de janeiro de 2021 em 09:35
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    Rime-me muito com o São Cristóvão Sujo ! Além de receber uns croques bem dados pelo Seu Gilberto perdeu a oportunidade de passear como Santo Sujo perdeu sua melhor roupa ! Bem feito !

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    • 9 de janeiro de 2021 em 13:19
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      Dr. Vinicius, por causa deste episódio, fui piada lá em casa por um bom tempo. Acabei rindo também. Quando minha mãe mostrou meu rosto num espelho, já em casa, entendi a razão das risadas.

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