O tenente-coronel Santo Antônio

Por Edberto Ticianeli

Divulgar que um dos mais conhecidos canonizados da Igreja Católica teve patente militar pode parecer apelo para chamar a atenção dos leitores, mas não é.

O santo português Antônio de Lisboa ou Antônio de Pádua (Lisboa, 15 de agosto de 1195? — Pádua, 13 de junho de 1231), realmente teve carreira militar, após ser canonizado.

Sua incorporação ao exército português se deu ainda no reinado de Affonso VI, O Vitorioso (de 15 de novembro de 1656 a 12 de setembro de 1683). Sentou praça no Regimento de Lagos por ser sempre invocado pelos oficiais quando entravam em combate.

A primeira promoção se deu por sua atuação no Brasil durante os ataques ao Quilombo dos Palmares. O sucesso das ações militares foi atribuído ao santo e D. Pedro II, O Pacífico, que governou o império Português de 12 de setembro de 1683 a 9 de dezembro de 1706, foi quem lhe concedeu a patente de Tenente.

Mas os feitos militares de Antônio de Lisboa não pararam por aí. Poucos anos depois de exterminar centenas de vidas em Palmares, voltou a “participar” da reação ao ataque dos corsários franceses Jean Francois Duclerc ao Rio de Janeiro em 1710.

Capitão Santo Antônio

Por este feito, no mesmo dia da vitória (18 de setembro de 1710) foi promovido a Capitão e sua imagem colocada no muro do Convento, voltada para a área onde houve o combate final.

Essa patente foi confirmada em 21 de março de 1711 pelo Conselho Ultramarino e pela aprovação régia. A mesma carta-régia estabeleceu que seus soldos (salário de militar) fossem aplicados nas festas em sua homenagem e nos gastos com a ornamentação de sua capela.

Três dias antes dessa confirmação, o capitão Duclerc foi assassinado. Estava “preso” em uma confortável casa na Rua da Quitanda.

A França aproveitou o crime para retomar suas ações militares na colônia portuguesa e enviou o almirante René Duguay-Trouin comandando uma esquadra com 17 navios e 5.400 homens.

Chegaram ao Rio de Janeiro em 12 de setembro de 1711 e aproveitando um forte nevoeiro desembarcaram sem serem vistos. Bombardearam a cidade oito dias depois, pondo em fuga o governador e a população. Somente deixaram o Rio de Janeiro, já toda devastada, após receberem muito dinheiro para isso.

Mesmo com essa derrota acachapante, Santo Antônio permaneceu com a patente, mas a demora em receber novas promoções denunciava que havia perdido parte do reconhecimento dos seus poderes em combate.

Major Santo Antônio

Chegou a sargento-mor (atualmente Major) somente em 14 de julho de 1810 pelas mãos do Príncipe Regente de Portugal, D. João de Bragança, que, diante da primeira invasão napoleônica, havia fugido da Europa para o Brasil em 1807.

O decreto real explicava a promoção:

“Sendo-me presente a viva devoção do povo do Rio de Janeiro para o glorioso Santo Antônio, que moveu um dos meus augustos predecessores a dar ao mesmo Santo, em 1711, o posto de capitão, tendo antes praça de soldado, depois do feliz assalto em que os habitantes da Cidade resistiram ao ataque dos franceses e tendo o céu abençoado os meus esforços para salvar a monarquia da grande e difícil crise a que se tem achado exposta, esperando ainda maior auxílio para sua final e inteira restauração, para que muito há de concorrer, como devo piamente esperar, a intercessão do mesmo glorioso Santo a quem tenho particular devoção: Hei por bem que se eleve-o ao posto de sargento-mor de infantaria desta Capitania e que pela Tesouraria se lhe fique pagando o competente soldo. O Conselho Supremo Militar o tenha assim entendido e faça executar. Palácio do Rio de Janeiro, em 14 de julho de 1810. (Com a rubrica do Príncipe Regente). Cumpra-se e registre-se (Com 5 rubricas do Conselho de Guerra).”

Assim promovido, o ministro de Estado, Conde Linhares, publicou aviso em 18 de outubro de 1810 estabelecendo o pagamento do soldo, sem dedução alguma. A corte no Brasil não sabia que quatro dias antes desta publicação, as forças francesas tinham sido derrotadas e expulsas de Portugal, fracassando a sua terceira invasão napoleônica.

Os portugueses, nessas ações militares, contaram com a fundamental e expressiva colaboração do Exército inglês,

Entretanto, Napoleão Bonaparte somente foi derrotado em abril de 1814.

Tenente-coronel Santo Antônio

Para comemorar os feitos do exército português, D. João VI resolveu homenagear o santo de sua devoção e o promoveu a Tenente-Coronel em 26 de junho de 1814.

Eis o Decreto da promoção:

“Faço saber aos que esta minha carta patente virem que, sendo da minha particular devoção o glorioso Santo Antônio, a quem o povo desta cidade incessantemente e com a maior fé dedica os seus votos, e tendo o céu abençoado os esforços dos meus exércitos, com a paz que se dignou conceder à monarquia portuguesa; crendo eu plenamente que a eficaz intercessão do mesmo santo tem concorrido para tão felizes resultados: Hei por bem que se eleve ao posto de tenente-coronel de infantaria, com ele haverá o respectivo soldo, que lhe será pago na forma das minhas reais ordens, pelo que o Marechal de campo Ricardo Xavier Cabral da Cunha, que na qualidade de ajudante general e encarregado interinamente do comando das armas desta corte e capitania assim o cumpra; e o soldo referido se assentará nos livros a que pertencer, para lhe ser pago nos seus devidos tempos. Em firmeza do que lhe mandei passar esta carta, por mim assignada e selada com o selo grande de minhas armas.
Dado nesta cidade do Rio de Janeiro aos 31 dias do mês de agosto do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1814. O príncipe com guarda-Gaspar José de Mattos Ferreira e Lucena-José Caetano de Lima. Por decreto de S. A. Real de 26 de junho de 1814, e aviso de 22 de agosto do mesmo ano. — Pedro Vieira da Silva Telles a fez escrever. — Antônio José Pinto a fez. — Registrada á fl. 46 do livro 6º de patentes”.

Esta foi a última promoção de Santo Antônio.

Como “eterno” militar da ativa, esperava-se que seus soldos continuassem sendo pagos indefinidamente.

Entretanto, com o advento da República (1889), o Estado separou-se da Igreja por determinação do Decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890, pondo fim a quase quatrocentos anos de Padroado.

Como esse afastamento não se deu de forma radical, como previsto, alguns benefícios religiosos foram mantidos e entre os que continuaram estavam os soldos do Tenente-Coronel Santo Antônio.

O pagamento foi interrompido em abril de 1911 e em 1923 o guardião do Convento de Santo Antônio no Rio de Janeiro requereu ao Ministério da Guerra o pagamento dos soldos devidos ao Tenente-Coronel.

Esse Convento era o mesmo que recebeu em um dos seus muros a imagem de Santo Antônio após a expulsão dos franceses em 1810, quando da sua promoção a Capitão.

A cobrança foi enviada ao Consultor-Geral da República, que respondeu em 3 de abril de 1923 opinando pelo não deferimento do pedido, argumentando que o pagamento em questão infringia o preceito constitucional, que determina que nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial.

Esclareceu ainda que o cumprimento dos atos legais por longo tempo poderia ter criado um direito adquirido de ordem patrimonial, impedindo a sua anulação, mas que isso não ocorria por falta da existência de um titular desse direito. Teria que ser uma pessoa, física ou jurídica.

Mesmo sem soldo e tendo a patente militar cassada, Santo Antônio permaneceu na ativa e é considerado um dos santos com mais devotos do cristianismo. Em sua homenagem, milhões de Antônios estão registrados em cartórios, centenas de ruas e praças, e até cidades, receberam seu nome.

No Brasil é, principalmente, o santo responsável por viabilizar incontáveis casamentos. Melhor assim. É preferível estar perto da vida que da violência e da morte.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *