Memória da Flor: uma homenagem a Zé Paulo

Edberto Ticianeli 

O ano era 2009, mas não me recordo do mês. Abro a caixa de e-mail e lá está uma mensagem do Zé Paulo com mais uma das suas poesias. Começo a ler e descubro que não é mais uma poesia: é uma bela poesia, com jeito de letra de música.

Como o Júnior Almeida já tinha gravado alguma coisa do Zé Paulo, encaminhei a mensagem para ele comentando que aquele material tinha tudo para ser uma música. Minutos depois recebi um telefonema do Júnior Almeida:

— Estou aqui arrepiado com a poesia do Zé Paulo. A música está pronta na minha cabeça e assim que terminar eu mostro pra você.

O poeta Zé Paulo, na redação do Jornal de Alagoas

Tempos depois eu recebi a Memória da Flor, mais um belo trabalho do Júnior, que, para mim, soa como uma homenagem ao Zé Paulo. “Memória da Flor” está em um dos últimos CD do Júnior Almeida.

Memória da Flor

O universo se expande
Infinitamente até o verso
Era uma flor enorme branca e azul
Sobre a cidade
Não era nem uma flor
Era a memória da flor
Não era nem uma flor
Move-se ou não se move no céu
Abstração antes de significado
Os meu sentidos imprimem
Que os seus sentidos imaginarão
E vice e versa
Eu vi que era suave o mergulho
Do universo em direção a minha oração
Feito o amor que é ilusão e prazer
Na superfície do amanhecer
Não era nem uma flor
Era a memória da flor
Não era nem uma flor

Mas quem é esse Zé Paulo?

Conheço José Paulo da Silva Ferreira, Zé Paulo para os mais próximos, há muito tempo. Além de conterrâneo, lá de Pão de Açúcar — onde nasceu no dia 29 de junho de 1962 —, estivemos juntos na militância política no início dos anos 80. Zé Paulo frequentava regularmente a nossa casa, principalmente pela amizade com o meu irmão, o Etenio.

Março de 1981. Estudantes secundaristas invadem a Secretaria de Educação. Zé Paulo está de boné, no alto à direita

Nessa época ele já produzia suas poesias, que eram publicadas nos jornais estudantis, como o Semente — jornalzinho dos estudantes universitários de Pão de Açúcar e editado por Etevaldo Amorim. A poesia abaixo foi publicada na edição de novembro de 1980 e traduzia o clima da luta contra a Ditadura Militar.

Metamorfose

Não se pode fugir
do açoite,
da noite
Mas se pode trazer
uma lanterna
muito acessa.

Pode-se dizer não
ao sistema
que se vai
É preciso dizer não
com força,
com garra,
com toda a certeza
de quem sabe da fé
em uma nova vida.

É preciso saber que
o novo homem nasce
ASSIM.

A Coletânea Caeté do Poema Alagoano, lançada em 1987 pela Secretaria de Cultura de Alagoas, também publica uma das poesias de Zé Paulo. Mas, o primeiro trabalho premiado dele foi “A incrível prisão de Rui de Castro”, escolhido para ser publicada no “I Concurso de Poesia Falada”, promovido pela Fundação Cultural Cidade de Maceió em 1997. Esta é considerada, por muitos críticos, como uma das melhores poesias da última década do século XX em Alagoas.

A incrível prisão de Rui de Castro

Numa cidade pequena,
as moscas estão muito próximas das pessoas.
Rui não está embriagado no bar central,
com os olhos de molho no copo seco,
molhado de espuma seca,
ouvindo músicas ao violão deserdado de Etênio,
o ex-hippie, porque Rui está em casa
com os olhos molhados, enfiados num livro sem fim .
E, se acaba, botam-lhe outro entre as mãos e o cérebro,
um pouco ante os olhos molhados
de alguma coisa feito solidão.

Rui não está na calçada da igreja local, 
ouvindo as taras da juventude local, 
entre umas pernas e outras das moças passando
após as conversas com o padre,
morrendo de medo das moças fantasiadas 
morrendo donzelo, culpado, 
enfiando-se na alta calçada de cimento 
querendo sumir por baixo da porta.

Rui não está lá, nem na porta da farmácia,

onde velhos e novos fazendeiros contam os bezerros
vacinados ontem por medo da febre aftosa
e vomitaria nas botas novas dos senhores proprietários 
porque Rui de Castro está em casa, 
sem peito para nada, sem jeito para nada.

Rui de Castro não passeia pelas ruas pequenas, 

malfeitas, porém belas, 
por simples horror dos cumprimentos efusivos
ou não efusivos.
Basta apenas um alô para desconsertá-lo 
e pô-lo em fuga dolorida, a alma exposta pelo avesso;
assim, ultra-sensível ao vento dos lábios
de quem quer que seja mais.

Ele era um rapaz da cultura ou contracultura;

aprendeu inglês ouvindo os Beatles mas,
eu não sei quando nem como,
alguma coisa de humano se perdeu e mora, cara, 
numa cidade tão mínima cabendo toda neste poema.

E Rui nunca mais foi ao rio porque Rui, há muito tempo,

é um rio correndo inexorável para dentro do mar,
com a desvantagem de ser um rio sem margem.

Em 2001, Júnior Almeida gravou a música “República da Rocinha”, a partir de uma poesia de Zé Paulo. É a quarta faixa do CD “Dias de Calor”.

Zé Paulo escolheu, como o Rui de Castro do seu poema, morar em Pão de Açúcar. Continuo a receber, semanalmente, alguns trabalhos seus e, atento, garimpo no meio de tanta coisa boa para ver se encontro outra pedra preciosa.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

Um comentário em “Memória da Flor: uma homenagem a Zé Paulo

  • 26 de dezembro de 2017 em 00:32
    Permalink

    Olá, Ticianeli, confesso que ignorava estes seus registros culturais tão dignos de destaque e reverberação! A poesia de Zé Paulo me trouxe o sabor da história e da luta por dias melhores desde o tempo do movimento estudantil, no qual queríamos tanto ser a vanguarda da classe trabalhadora! De vários aprendizados, a arte de ser arte na palavra e no tom de Zé Paulo continuam fazendo sentido e dando o sentido mais emancipatório à própria natureza da luta social! Parabéns!

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