Zé da Pinga

Aldemar Paiva

Guardo da minha infância e juventude verdadeiras relíquias evocativas. Nossa casa de família pobre é uma delas. Porta e janela à rua Cirilo de Castro, em plena Levada, que era um subúrbio tipicamente humilde na cidade de Maceió, Alagoas.

Meu pai — ex professor em Porto Calvo era um daqueles patriotas brasileiros que não julgavam Calabar como traidor e sim como herói. Ele trabalhava no DVOP ganhando pouco, porém minha mãe administrando tudo conseguia deixar em todos os meses a conta pela receita.

Eu estudava no Colégio João Pessoa de dona Roselita e do professor Cardoso, defronte do Mercado Público e bem pertinho da casa da gente. Recordo a noite indormida que antecedeu ao “7 de setembro,” em que eu na parada estudantil desfilaria como porta-bandeira.

Também pudera, eu era afilhado dos professores e donos do educandário. Foi tamanho o meu entusiasmo que na véspera, por volta das quatro e meia da manhã eu já andava fardado pelo meio da casa. A passeata só não foi uma beleza, porque o nosso João Pessoa chegou atrasado na concentração da Praça Deodoro da Fonseca e foi recebido debaixo de vaias.

Eu adorava acompanhar as séries com o Rin-tin-tin no cinema Royal. Porém a gente não tinha empregada e dona Maroquinha (minha mãe) só me liberava para a “matinée” se eu lavasse os pratos. Eu me aborrecia às vezes, porém sabia desculpá-la sempre pelo seu estoicismo e pela maneira sublime como adorava seus filhos, ajudava e respeitava meu pai.

Eu era mais velho do que Alberto, Aldo, Aldeir e Albertina (Dadá) meus irmãos, todos com a letra A da palavra Amor. Exigência materna de dona Maroquinha.

Seu Mário — meu saudoso pai — parece que recebera de Deus, uma ordem restrita para que fosse humanamente bom para com a sua família e seus amigos. E foi assim que ele soube levar a vida, cumprindo religiosamente essa divina incumbência. Meu pai viveu como um verdadeiro anjo e faleceu como um venerado santo.

Mas, em verdade não devo mexer com essas evocações tratando de tudo exclusivamente na primeira pessoa. Ao tempo de estudante, quando minha mãe forçou a barra do orçamento doméstico e nos matriculou (Alberto e eu) no Colégio Diocesano passei a viver um novo tempo de convivência estudantil e de felicidade. Conheci gente feliz e ganhei alguns queridos amigos que ainda hoje conservo com muita preciosa dedicação.

Um deles — Gerson Omena — companheiro fiel e alegre desde o secundário ao NPOR, onde vivemos um período descontínuo de aprendizagem militar — ainda hoje, sempre que nos permitimos no Recife ou no seu paraíso de Ipioca, voltamos pela saudade ao passado de uma convivência duradoura mais do que amiga.

Gerson conquistou seu mundo telúrico onde implanta suas peculiaridades de cidadão praieiro ao lado da sua Terezinha de voz adorável para cantar aos seus ouvidos. Gerson é o Paxá da Ipioca, dono do mar azul e senhor dos verdes montes.

Foi lá que eu ouvi comentários sobre a sagacidade do Zé da Pinga. Mas ouvi falar também que a sabedoria matuta desse folclórico servidor do dr. Gerson, esbarrava sempre na admirável inteligência do seu patrão.

Foi o jornalista Bráulio Leite Júnior, famoso e genial homem de teatro em Maceió, recolhido agora à Confraria de Paripueira onde se exercita como presidente vitalício, quem me contou um causo recente envolvendo essas duas pitorescas figuras.

Zé da Pinga — apesar de chegado ao vício de “umas e outras“, é um homem rústico, gaiato e sério no que se refere à confiança conquistada ao longo dos anos no seio da família do Chefe. Porém Terezinha, como dona de casa perspicaz não se deixa levar muito pela prosa do Zé. Em especial no que se refere à dinheiro emprestado que, depois das biritas é o seu esporte favorito.

Pois bem, Zé da Pinga voltou a procurar o dr. Gerson, buscando uma grana emprestada. Precisava urgente de 100 paus para pagar até o fim do mês. Terezinha foi contra.

Gerson porém, foi buscar o dinheiro mas abriu bem os olhos do : — “Preste atenção! O cabra só me engana uma vez. Guarde isso na sua cabeça, o cabra só me engana uma vez.” Passou-lhe as notas e deu-lhe as costas.

Acontece que antes do dia 31 Zé da Pinga bateu cedinho na casa do patrão.

Interrompeu o café da família, efetuando o inesperado pagamento. Gerson não disse nada. Pegou o pequeno embrulho e botou no bolso do pijama. Gerson estava realmente surpreso. Zé sorriu, agradeceu, beijou a mão de dona Terezinha e ganhou o mundo.

Passado certo tempo volta o Zé da Pinga pedindo uma audiência. Diz que a mulher abortou de manhã e ele precisava de uns 200 reais para levá-la ao médico em Maceió.

Dr. Gerson bota a mão no ombro do Zé e despacha a sentença: – “Negativo. Nem um centavo.”

Zé da Pinga esperneia dizendo que o caso é sério. O patrão está irredutível. Zé apresenta uma razão que considera imbatível: – “Mas, minha última dívida eu paguei no prazo! “Aí, dr. Gerson desfecha o golpe final: “Por isso mesmo, Zé! Eu estava certo que você jamais me pagaria. Aí você me surpreendeu e pagou… Quer dizer que me enganou… E eu tinha dito que o cabra só me engana uma vez. Portanto eu tenho que manter minha palavra. Já que eu fui enganado… pode ir chorar noutra freguesia! Agora, nada feito! O cabra só me engana uma vez!”

*Publicado originalmente no livro O Conto das Alagoas, Recife:  Edições Bagaço, 2007, Carlito de Lima/Edilma Bomfim (orgs.), p.20-23.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

3 comentários em “Zé da Pinga

  • 28 de março de 2021 em 10:13
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    Brilhante Aldemar Paiva que não tive o prazer de conhecer pessoalmente, o início da narrativa mostra como era a vida na nossa Maceió, principalmente na região do Centro, Levada e Ponta Grossa. Mostra, também, o comportamento respeitoso e cordial que imperava. Simplesmente brilhante!

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  • 28 de março de 2021 em 10:23
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    Que maravilha!
    Aldemar Paiva, é genial…

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    • 29 de março de 2021 em 22:46
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      Beleza de crônica! Uma festa pra alma.

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