Viola enluarada, vento e mar

Miguel Gustavo de Paiva Torres

Edilson Alcântara era o irmão mais jovem de um renomado e respeitado professor de língua portuguesa, Edson Alcântara, ambos alagoanos de origem afro-brasileira situados na classe média da nossa pequena cidade de Maceió.

Nos anos 60 do século passado a população da nossa encantada cidade mal chegava aos 150 mil habitantes. Saltou para 300 mil nos anos 70, pulou para 600 nos anos 80 e chegou aos nossos dias com mais de um milhão de habitantes, parcialmente desfigurada pela explosão imobiliária e multiplicação geométrica da população periférica em favelas e grotas.

O sonho do progresso urbano e da cidade grande chegou na mesma velocidade do encarecimento do custo de vida, poluição das nossas praias e lagoas caribenhas, fome e miséria espalhadas em formigueiros majoritariamente formados por afro-brasileiros e caboclos de roçado perdidos na ilusão das luzes da cidade. Violência e medo permeando a segregação na desigualdade símbolo do nosso país das verdes matas e céus estrelados.

Edson, o professor era um homem afável, sério e sisudo. Edílson, o irmão, nasceu com a música na alma e a sensibilidade da natureza transformada em obra de arte. Foi nosso companheiro quase permanente de serestas na rua de nossas alegrias, a Ângelo Neto no Farol.

A turma do violão tinha um repertório de época que sempre abria a festa com Amigo é Pra  Essas Cosas: “..como é que vai, amigo há quanto tempo..”, seguia com Andança, Viola Enluarada, Carolina, Marina, Laura e todas as mulheres do mundo.

Edílson tinha o que se chama a voz de ouro. O vozeirão que sai do fundo da alma e atravessa o coração do cantor e de quem estiver ouvindo o milagre do vento que balança as palhas dos coqueiros.

Fins de semana, dependendo dos trocados que podíamos reunir em conjunto, saíamos em caravana musical pela cidade, de bar em bar.

Podia ser perto, no Bar do Chopp, no centro da cidade, com seus ovos cozidos coloridos, no Colonial, na praça da Assembleia ou longe, como no Bar do Biú, ao lado do antigo campo do CRB, na Pajuçara, único onde serviam o cação, filhote do tubarão, como tira gosto. Ou na Ponta Grossa, onde encontrávamos o melhor custo benefício para a farra de frutos do mar e cerveja, muita cerveja. Às vezes uma caninha para equilibrar.

Eventualmente, em tempos de lua cheia e ventos alísios, fazíamos nosso farnel e íamos para a beira-mar, tocar e cantar nas brancas areias da Praia da Avenida, no Centro, ou na nossa mítica Pajuçara, ainda com ruas de barro.

Ponta Verde e Jatiúca, selvagens, estavam a léguas de distância em nossa geografia imaginária. Longe, escuras e desabitadas.

Foi em uma dessas noites, já tarde, sentados nas areias da Pajuçara e ouvindo Edílson mais uma vez cantar o nosso cancioneiro tradicional de serenatas que a tempestade chegou, na esteira dos ventos que levavam para outros mundos a nossa música amorosa.

Havia uma das antigas e tradicionais barracas de coco com teto de palha e frágil iluminação por uma lâmpada pendurada por um fio. Não tivemos dúvida. Pulamos todos para dentro da barraca vazia e continuamos nossa seresta movida a Cinzano misturado com aguardente. 51 ou Pitú não lembro. Mas a mistura se fazia na inocente garrafa do famoso e italianíssimo Cinzano. Ninguém desconfiava.

Já estávamos abrigados havia mais de hora na barraca quando resolvi estender os braços apoiados nos cotovelos para dentro da lona que circundava a barraca e onde se guardavam os cocos e ferramentas.

Nessa época só tínhamos poucos ladrões de galinhas na cidade e pobre não roubava pobre, como hoje em dia. Agarrei em algo macio e peludo e pumba: com os olhos arregalados e espingarda na mão saiu de lá de dentro do seu sono e sonhos o caboclo dona da barraca. Mais assustados ficamos nós e o silêncio da perplexidade: do caboclo e nossa, armados com dois violões.

Nesses casos de perspectivas de conflito o nosso negociador era o sempre diplomático e suave Hilário, que se apressou em explicar que nós só estávamos passando chuva e não sabíamos que a barraca estava ocupada.

O homem se tranquilizou, a chuva passou e andamos quilômetros cantando depois da chuva na volta da Pajuçara ao nosso pacato recanto no bairro alto do Farol.

Nessa madrugada, embriagado, fui recebido em casa por uma bela surra de cinturão. Não tinha quinze anos, talvez quatorze ou treze.

O mar, o vento, a lua e o violão. Edílson morreu ainda nessa época, vítima de um enfarte fulminante. Cantava como se soubesse que a vida era breve e passageira e a arte eterna.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

2 comentários em “Viola enluarada, vento e mar

  • 25 de abril de 2021 em 13:01
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    Egberto, Boa tarde!
    Sou Fatima Braga (ex esposa de Edson Alcantara). Quero agradece-lo pela linda homenagem feita aos Alcantara. Seu relato, tão fidedigno, me fizeram os olhos gotejar.
    Farei chegar a Edson seu belo artigo e valiosas lembranças.
    Muito grata!

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    • 25 de abril de 2021 em 18:13
      Permalink

      Fátima, o professor Edson merece todas as nossas homenagens, mas preciso fazer uma correção: o texto publicado é do nosso embaixador Miguel Torres.

      Resposta

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