Lázaro em telhado de ossos

Edberto Ticianeli

Foto: Feira de Pão de Açúcar em 1916

O Nordeste ainda se recuperava da seca que castigou a região entre 1962 e 1964, quando novamente, em 1970, a falta de chuvas voltou a atingir os sertanejos de forma calamitosa.

Em Pão de Açúcar, cidade ribeirinha do Rio São Francisco situada na região do semiárido brasileiro, parte da população sofria até com a falta do que comer.

Esse quadro desesperador era percebido em nossa casa, na Ponta Grossa, em Maceió. Passamos a receber conhecidos de lá, que procuravam a capital em busca de trabalho ou de tratamento médico. Assim ficávamos sabendo do quadro de penúria dos mais desassistidos.

Para nossa surpresa, um desses visitantes foi o Lázaro, personagem muito conhecida em Pão de Açúcar por apresentar desequilíbrio mental e por ser filho do grande poeta cordelista Livino Farias Brazão, o Livino Bola.

Livino Brazão, Foto do Blog do Etevaldo

Lázaro tinha frequentado a escola e de vez em quando exibia seus conhecimentos, incluindo um amplo domínio sobre a língua inglesa. Comentava-se que tinha adoecido por ter estudado além do necessário.

Era uma visita inesperada. Explicou que tinha pego uma carona na camioneta de um comerciante local e que voltaria dois dias depois. Disse ainda que estava em Maceió para recolher alimentos e assim ajudar o povo de sua terra.

Meu pai, que gostava dele e era amigo de Livino Brazão, prontamente improvisou um lugar para acomodá-lo em um dos aposentos da casa.

Na madrugada do dia seguinte, ouvimos quando ele saiu dizendo que iria até o mercado da Levada pedir comida e que estava levando alguns sacos vazios para transportá-los.

Voltou ainda cedo carregando dois dos sacos cheios de algo que não conseguimos identificar. Foi para dependência onde estava e, em seguida, procurou a minha mãe perguntando se tinha sal, no que foi prontamente atendido.

No início da tarde, quando todos descansavam um pouco, um ruído anormal surgiu no alto telhado do velho armazém que fazia parte do desgastado prédio onde morávamos, na esquina da Rua Santo Antônio com a Rua Guaicurus.

Fomos para o quintal e vimos que dezenas de urubus disputavam espaço sobre a cobertura, lembrando uma famosa cena do filme Os Pássaros, dirigido por Alfred Hitchcock.

Estávamos ali, olhando para cima, sem entender o que acontecia, quando Lázaro se aproximou e começou a fazer movimentos para afugentar os urubus. Imediatamente percebemos que ele deveria estar envolvido com aquilo.

Lázaro, o que você colocou no telhado que está atraindo tantos urubus? — quis saber meu pai.

Ele fugiu da conversa, foi até o fundo da casa e voltou arrastando uma escada, por onde subiu e começou a recolher nos sacos o material exposto ao sol.

Quando desceu com o primeiro deles, notamos que eram ossos de boi, quase todos sem carne alguma e já exalando mau cheiro.

Era uma situação tão atípica que ficamos trocando olhares de riso, aguardando Lázaro, que descia com o segundo volume após ter espantado os urubus.

Lázaro, o que você vai fazer com esses ossos? — voltou à carga meu pai.

Dessa vez ele respondeu.

— Vou levar para o povo fazer sopa lá em Pão de Açúcar.

— Mas estão estragados, apodreceram, Lázaro. Não servem mais para nada.

Ele olhou para os sacos num canto do quintal e vimos as lágrimas descerem por seu rosto. Era a tristeza em pessoa, acabrunhado, de cabeça baixa.

Nessa hora, compreendemos o quanto significava para ele a solidariedade. Mesmo em seus devaneios mentais, Lázaro se esforçava para alimentar os que tinham fome.

Ficamos tocados pelo seu gesto. Era uma lição.

Após muita conversa, meu pai conseguiu demovê-lo da tarefa a que tinha se proposto e lhe ofereceu o dinheiro suficiente para que comprasse e distribuísse alguma comida em Pão de Açúcar.

Mais difícil foi manter em casa dezenas de ossos fedorentos até o dia seguinte, quando tivemos que dar uma gorjeta ao lixeiro para que aceitasse se desfazer daquela ossada como lixo.

Não tive mais nenhuma notícia do Lázaro, mas daquele dia guardei o seu exemplo, de um homem doente, parcialmente alienado da realidade, mas, mesmo assim, preocupado com o próximo.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

Um comentário em “Lázaro em telhado de ossos

  • 26 de abril de 2021 em 17:56
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    Lázaro ainda é vivo, mora sozinho em Pão de Açúcar conseguiu uma pequena aposentadoria pela Previdência Social, segundo comentários da vizinhança nunca foi ao banco sacar os recursos.

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