Quem quebrou o Xangô em 1912?
Edberto Ticianeli – Jornalista
No dia 1º de fevereiro de 2012, foi assinado o pedido de perdão oficial do Governo do Estado de Alagoas aos seguidores dos cultos afrobrasileiros. O perdão se refere aos acontecimentos de 1º de fevereiro de 1912, quando os terreiros foram destruídos e seus frequentadores agredidos por uma multidão enfurecida sob o comando dos oposicionistas ao governo de Euclides Malta.
O fato do governo pedir perdão faz parecer que o quebra foi simplesmente uma ação repressiva de cunho racial e religioso. As matérias de jornais sobre o assunto também contribuem para esse entendimento distorcido. São citados vários exemplos de governos e instituições muito próximas de governos, como a Igreja, que pediram perdão por crimes contra os direitos humanos.
Como resultado dessa incompreensão, uma autoridade entrevistada por jornal de grande circulação fez referência ao episódio como uma “postura repressora do Estado”. A questão, quando estudada com mais rigor, não aparece tão simples assim. O Quebra de 1912 em Alagoas está mais para um acontecimento provocado pelos conflitos inter oligárquicos da época, num momento em que o Estado estava enfraquecido por uma grave crise política.
Douglas Apratto Tenório fez um excelente estudo sobre a questão em Metamorfose das Oligarquias (HD Livros, 1997). O renomado historiador identifica que o longo período de poder dos Maltas e as disputas entre os vários segmentos das oligarquias haviam feito surgir uma oposição ao governo de Euclides Malta em torno dos nomes do general Clodoaldo da Fonseca e Fernandes Lima.
Clodoaldo era parente do presidente Hermes e seu chefe do Gabinete Militar, ambos ocupando posições de poder que deram à oposição em Alagoas uma postura destemida diante do aparelho policial local.
O ambiente político em Alagoas, nos momentos que precedem ao Quebra de 1º de fevereiro de 1912, é tumultuado. As manifestações se sucedem com mais agressividade. Apratto cita o jornal conservador Gutenberg, que vê na desordem “uma tendência doentia invadindo uma grande parte dos indivíduos que surgem em toda parte pregando doutrinas subversivas de ordem moral e social com o fim de induzir o povo à degradação”.
O clima de sublevação atinge os trabalhadores, segmentos médios e “até coronéis do interior”, historia Apratto. Assim, no dia 17 de dezembro de 1911, é fundada a Liga dos Republicanos Combatentes, que tinha à frente Manoel Luís da Paz, um militar reformado, “que, ao contrário do seu sobrenome, professava uma belicosidade exarcebada”. Esse grupo paramilitar assume o papel de guarda armada dos oposicionistas ao governo.
“Alguns dias após a sua criação, os integrantes da Liga invadem com alarido, de armas na mão, a residência do Intendente da capital, Luís Mascarenhas, que, diante das ameaças da turba enfurecida, teve que fugir com a mulher, pulando o muro dos fundos, para resguardar-se na casa de vizinhos”, narra Apratto. Esse era o ambiente em Alagoas descrito no livro Metamorfose das Oligarquias.
Quem eram os mobilizados contra o governo de Euclides Malta? Eram “ricos e pobres irmanados na ira: trabalhadores da Levada e Jaraguá, canoeiros, pescadores, operários, comerciários, ferroviários, estivadores, bancários”. São estes que enfrentavam a polícia do governo, quase sempre com derramamento de sangue. A tática era a de fustigamento do governo, “usando toda sorte de armas: o grito, a vaia, o paralelepípedo, o tiro esconso”.
O governador Euclides Malta era católico e “respeitava, como boa parte dos políticos, o culto afro com seus milhares de adeptos”. Douglas Apratto informa que Euclides tinha uma boa relação com os terreiros, ao ponto de se espalhar que os seus responsáveis apelavam às suas divindades para que ele permanecesse eternamente no poder. “Os batuques dos terreiros que se espalhavam pela capital, de Bebedouro a Pajuçara, da Levada ao Farol, soavam como provocação e pareciam contribuir para a forte resistência da prolongada oligarquia, Daí um assalto geral contra eles”, diz Apratto.
Mesmo considerando que houve “racismo, intolerância e oportunismo” no episódio, Apratto sentencia que “a realidade, porém, é que a vandálica destruição dos xangôs de Maceió por parte da Liga dos Combatentes, o famoso quebra-quebra de 7[sic] de fevereiro de 1912 , mais parecido com um auto de fé, foi inquestionavelmente um ardiloso plano político”. A população foi jogada contra eles, movida pela “poderosa opinião da Igreja e do segmento mais influente da sociedade”.
A partir desse episódio, com o fortalecimento do Partido Democrata (de oposição) e ainda com a esperada queda dos Maltas, a polícia assume a tarefa de reprimir e enfraquecer os aliados do então governador. Assim, “institucionalizou-se o terrorismo político-religioso contra os adeptos daquele culto, impedindo sua reorganização. Os suspeitos eram surrados barbaramente em plena via pública e seus praticantes fugiram para outros Estados”.
Como se percebe, o conflito político entre as oligarquias foi o fator decisivo para a agressão aos terreiros e seus adeptos. Entender assim, nos ajuda a perceber que os danos provocados pelas oligarquias atrasadas ao estado de Alagoas são mais graves do que a reprovável e absurda perseguição aos cultos afrobrasileiros.
Elas também são responsáveis por outros “quebras”, como a do Produban, ou ainda pior, pelo “quebra” de figuras humanas como a do tributarista Silvio Viana, que investigava o não pagamento do ICMS por parte das novas/velhas oligarquias de Alagoas.