Rosto no espelho
Miguel Gustavo de Paiva Torres
Mergulhei profundo o rosto no espelho. Esta noite que passou foi uma máquina de moer pensamentos insones. E também insanos. Muitos deles. Mas foi a alma de Clarice Lispector que chegou e se entranhou na minha alma. Uma visão clara, real, de carne e osso, fumando, como sempre, e conversando suave comigo, como sempre.
Sinto e sei o que Clarice passou em sua vida aparente de embaixatriz. Como deve ter sido difícil enfrentar os salões e as intrigas. Mesmo recebendo falsos buquês de flores para enfeitar o jardim dos seus pensamentos. Tenho ela como uma amiga sem nunca a ter visto, a não ser no busto que a homenageia aqui na cidade do Recife, onde viveu amores e temores.
Foi no exame vestibular de 1971, sentado em uma banca no Estádio Rei Pelé, em Maceió. Recebemos a ordem do fiscal para desvirar a página em branco e começar a fazer o que tinha que ser feito na prova eliminatória de língua portuguesa. Ali estava. Clarice e o rosto no espelho. Tinha que interpretar o que já estava interpretado. De quem é este rosto que vejo no espelho. A quem pertencem essas mãos…? Me apaixonei. Perdidamente. Para sempre.
Foi quando a poesia entrou por baixo da minha pele, assim como Clarice, a primeira musa. Não consegui dormir ontem na madrugada silenciosa, suave e agradável, da antiga cidade da mocidade daquela dama do mundo. Só tinha olhos e coração para Clarice.
Quando o êxtase passou, comecei, ainda deitado, a relembrar os meus tempos de aprendiz de poeta. Jorge de Lima, ídolo, sempre presente quando visitava minhas amigas que moravam em sua antiga casa na Praça Sinimbu, em Maceió. Cheguei a rezar para que eu fosse sim a reencarnação de Jorge de Lima, baseado no motivo concreto de que nasci em Maceió no mesmo ano em que ele faleceu no Rio de Janeiro, 1953. Este fato acidental me dava a esperança de um dia deixar de ser aprendiz e acordar poeta.
Aí comecei a ouvir os Beatles, estudar a língua inglesa, e conheci Robert Frost. A dúvida chegou e bateu forte. Então naquela floresta amarela e outonal eu tinha chegado a uma bifurcação na estrada da vida. Qual dos dois caminhos seguir, perguntava Robert, e no final, ele dizia, tudo dependerá da estrada que escolher nesta floresta da vida. Um somatório de acidentes no percurso daria a resposta. — “Ontem eu vi Maria na janela, eternamente” —; é um poema inteiro e único de Mario Quintana, sentado também eternamente na sua praça, em Porto Alegre.
Tão simples e tão verdadeiro: Richard Brautigan, o poeta hippie da Califórnia dos anos 60 e 70.
“É tão belo acordar sozinho na manhã e não ter que dizer a alguém que a, o, ama, quando já não mais ama”. “Enquanto as águas paradas corriam profundas…”, completava Elliot.