A velhice

Osvaldo Epifanio

Dia desses, assistindo à série (imperdível) Sozinhos, T1, no streaming Amazon, com Helen Mirren (The Queen), Dan Stevens (The Call of the Wild) e Morgan Freeman (Driving Miss Daisy), vi duas frases emblemáticas. Não por serem novas em suas leituras filosóficas ou históricas, mas por se apresentarem monocórdias e ferozes na voz monóloga dos atores dessa série de episódios curtinhos (longe de mim ser movie publisher da empresa americana). “A velhice é uma inimiga estranha, áspera” e “Não vi você aí.”

A velhice, ou aquilo que nos torna tortos em tudo diante dos dias, é um aviso imprevisível, sem o papel colado na geladeira. Há quem a alcance e quem não a veja mais tarde. Mesmo assim, ela existe… para os vivos, claro.

Na ferina frase de Fernando Pessoa “O próprio viver é morrer”, encontramos a velhice cara a cara com a nossa ansiedade, mesmo nos dias novos ou medianos de vida. Acredito que a velhice é, antes de tudo, o tempo suficiente vivido antes do chamado da Senhora das Sombras. A idade sempre é revogável nessas horas, ou na hora.

A primeira frase da personagem, “A velhice é uma inimiga estranha, áspera“, me jogou no mundo dos que começam a acreditar que, se a velhice chegar (e ela já faz barulho em minha calçada), os mesmos dias que virão são os mesmos que se foram.
“Como?”, estranham a leitora e o leitor, “se o tempo a vir é totalmente diferente do tempo que se foi?”, continuam a estranhar. “Como acreditar nisso?”
Sejamos diretos:

Janela: os cotovelos velhos que se apoiam numa janela qualquer veem o mundo da mesma forma que os novos. As mesmas ruas e esquinas. Essas dobras urbanas não se modificam para atender à idade.

Degraus: mesmo trôpego, chego ao mezanino. Os degraus apenas são mais lentos. E daí, se estão lá para ser subidos? Um pé de cada vez é tudo o que eu quero.

Sofá: ao saber que minhas costas doem por estarem eretas um tempo longo, o sofá é um abraço. Que novo menino vê o sofá como um abraço? Nenhum. Já fui um deles, ora!

Supermercado: as gôndolas agora são outras. Produtos sem açúcares, verduras sem agrotóxicos, alimentos sem glúten, patês sem conservantes químicos. Até vou à seção de plantas. Se a orquídea estiver viçosa, eu levo.

Estacionamento: vagas para idosos. Fantástico! E o desenho em azul indicativo no chão e a placa de um boneco com bengala? Aqui o humor é impagável.

Sexo: há quem zombe que os velhos são seletivos, cautelosos, “melhor qualidade do que quantidade”. Tolice isso aí. O sexo é o mesmo da juventude. Só que, agora, você tem que ter cuidado de não mergulhar na cama, ou nos braços de outrem, como Elmo Lincoln, o primeiro Tarzan americano.

Óculos: não há charme maior num ser humano do que saber mexer nos óculos. Só o velho sabe mexer nos óculos. Primeiro, levanta o nariz; depois, com o dedo indicador, levanta a conexão das lentes (como se chama essa conexão?); em seguida, lança as duas mãos com os polegares  e os indicadores para ajeitá-los, pacientemente. É belo! Quando não os joga de forma clássica no bolso. É lindo!

Deus: ele já me faz pensar que já existiu, que me espera e que jamais vai me chamar. Deus se torna uma espécie de amigo íntimo, mesmo que o faça ser uma imagem ameaçadora de visitação. Ele se aproxima cada vez mais e se distancia, cada vez menos, da grande verdade: que ele não me receba tão cedo. Deus não liga para isso.

Alfaces: percebi que a velhice é, finalmente, o tempo corajoso das palavras. O velho não mede os dizeres, nem muito menos tem vergonha dos verbos. Foi quando, finalmente, me libertei das alfaces. O mais ideológico e imbecil alimento da humanidade, atrás apenas do chá de camomila. E disse com todas as letras: aos perdedores, as alfaces.

A segunda frase “Não vi você aí” atravessa a estrada, em diagonal. Sejamos curtos:

Frio: um cobertor é o único amigo meu sob a marquise de uma loja do Centro, à noite. Os meus pés estão descobertos e sozinhos.

Fome: quase não alcanço a esmola. Era um pacote de biscoito de rótulo verde. O rapaz fez até um esforço do seu carro no sinal. Tive que me levantar, à bengala, e correr lento para o meu almoço. Tive sorte.

Mertiolate: a Lenda, minha cadela, tinha desaparecido fazia uns dias. Por sorte, quando fui pedir uns trocados numa rua enlouquecida, a danada estava ali, só que no outro lado da calçada. Dei um grito. Ela não conseguiu vir até mim por causa dos carros insanos. Aí, parti, levei uma queda. Não tinha mertiolate e fiquei com a ferida até a Lenda lamber.

Pneus aro 20: eu estava no meio-fio quando a camionete encostou aos meus pés. O homem me viu, à esquerda dele, e esperou o sinal abrir. Foi embora no verde.

Morte: acho que a morte me despreza. Talvez ela tenha dito a Deus que eu não existo. Talvez o odor de minhas vestes tenha atingido as ventas divinas.

Alhures: ainda tenho a cuia de farinha que alimentei os meus filhos. Três. Um vive de esmolas comigo; outro morreu com 12 anos, de sarna. No pronto socorro, disseram que teve uma infecção; o mais velho, acho que deve ter 50 anos, nunca mais o vi. Mas tenho o retrato dele abraçado com a mãe. A mãe! Morreu faz tempo. Era minha companhia desde novinha. Morreu.

Velho.

Professor Osvaldo Epifanio

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

Um comentário em “A velhice

  • 17 de julho de 2021 em 17:44
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    Nem sei o que dizer… de tão tocante! Só sei que quero dizer. O que mais toca é que haja tantos velhos desamparados, sem o abraço de um sofá… Que sociedades ficam tão indiferentes? egoístas? Psicopatas? Os ‘pré-humanos’ cuidavam das feridas, reduziam fraturas – cuidavam… enterravam os mortos. Os celtas tinham sistema de pensões para velhos, viúvas e órfãos… Já é mais que tempo de termos mais pessoas empenhadas numa revolução total, irrestrita, mundial!

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