O Deserto e o Mar
Miguel Gustavo de Paiva Torres
Enquanto o antigo trem descia para o sul mergulhei nas páginas da poesia de Vicente Huidobro. Não conhecia o poeta chileno. Chile, terra de florestas virgens, vulcões, geleiras, mar, deserto, índios mapuche, alemães, espanhóis, criollos, flores e espadas. Um retalho de quase todas as paisagens do mundo em uma extensa tira de norte a sul bordada pelo artesanato das estrelas no céu do sul da América.
Para mim a poesia chilena residia nos mistérios de Pablo Neruda, na Isla Negra e nos terraços floridos de Gabriela Mistral e de Nicanor Parra. Huidobro foi um susto. Um vulcão escorrendo lava de poesia incendiando o oceano pacífico no deserto de pedras e flores. As flores surgem no deserto de Atacama como a chuva da esperança, a cada década passada.
Ler Huidobro viajando no velho trem, que lembrava o refinamento e o conforto do Expresso do Oriente, elevava as paisagens fantásticas do sul do Chile ao espaço onírico do mais estranho e belo surrealismo das telas de Dalí e de Max Ernst. Com os goles do pisco saur entrava cada vez mais fundo na percepção da alma ancestral dos nativos mapuches, aos quais Deus legou originalmente aquele pedaço de paraíso na terra azul.
Sentimento igual só tive quando conheci a poesia do peruano César Vallejo, no oásis de Ica; deserto se jogando ao mar na costa do pacífico sul, morada milenar de aves marinhas. A nuvem branca das gaivotas fazendo sombra no azul escuro da vida e da morte do povo Inca.
No trem, em cada parada, os meninos e meninas vendiam garrafas de uma mistura popular de café, leite, canela, casca de laranja e aguardente de uva. A “Cola de Mono” — rabo de macaco —, agridoce e suave. Bebi todas.
Desembarquei em Puerto Montt com as alucinações poéticas de Vicente Huidobro replicando no fogo permanente do vulcão em seu colar de branca neve, ao lado de nossa pousada. À noite, na varanda, a erupção do fogo se misturava às garrafas do vinho tinto de cepas chilenas cultivadas no semiárido e me perguntei onde moravam os deuses e os demônios que transitavam no meu medo e fascínio, ansiando em viver, na noite estrelada e vermelha, a poesia de Huidobro.
Belo relato poético.