Um dia, um gato

Miguel Gustavo de Paiva Torres
MEMÓRIAS DE PRAGA

Fantasia, poesia, metáforas, alegorias, armas poderosas na luta da cultura e da criatividade artística contra a opressão, em todos os lugares, em todos os tempos.

Cinco anos antes da eclosão da Primavera de Praga, nas ruas da cidade, já existia um movimento intenso da contracultura checa nos apartamentos e nos porões dos velhos prédios da cidade.

A juventude checa, assim como a russa, décadas depois, lutava ao seu modo contra os tanques, as botas e os dogmas do stalinismo empurrado goela abaixo pelos ocupantes soviéticos.

Resgatava a tradição dos mitos da sabedoria milenar e da fantasia eslava em obras de arte plástica, teatro, poesia, música, dança e, sobretudo, cinema.

A moderna indústria cinematográfica da Tchecoslováquia sempre foi uma referência mundial. Os Estúdios Barandov, em Praga, tinham selo de qualidade internacional, reconhecidos por sua excelência técnica e profissional.

Acuados por uma vigilância e censura extrema, os cineastas checos recorreram ao mesmo artifício utilizado pelos artistas em regimes ditatoriais: a dissimulação metafórica da realidade.

Em 1964, aos onze anos de idade, experimentando a chegada de uma ditadura militar em meu país, assisti encantado em uma sessão matinal no Cinema São Luiz, em Maceió, ao filme checo Um dia, Um gato, colorido, mágico, fantástico.

O filme havia recebido o Prêmio do Júri no Festival de Cinema de Cannes, em 1963, e já estava correndo o mundo. Foi a minha primeira aproximação com o espírito da fantasia e da mágica que marcam a alma do povo checo.

O filme tem um narrador que fala diretamente com a câmera e conta uma história, quase de conto de fadas, aos espectadores.

Em um colégio de uma pequena cidade, um professor fala sobre a história de um gato de uma bela jovem, Diana, que trabalhava em um circo.

O gato tinha poderes sobrenaturais. Cada pessoa que olhava assumia uma cor diferenciada: traidores ficavam amarelos, corruptos verdes, bondosos azuis, apaixonados vermelhos, opressores cinzas, e por aí vai.

Um dia o gato foge do circo e a cidade fica em polvorosa. Ninguém queria ser visto pelo gato e ter a sua verdadeira identidade pessoal descoberta.

No colégio, enquanto o professor contava aos alunos que todas as crianças da cidade haviam desaparecido como em um passe de mágica por causa desse estranho evento, o tirânico diretor do colégio fugia do olhar do gato.

O premiado diretor do filme, Vojtech Jasny, partiu para o exílio em 1968, seguindo a trilha de centenas de artistas e intelectuais checos, logo após o esmagamento das manifestações da Primavera de Praga pelos tanques e soldados soviéticos, enquanto eu completava quinze anos de idade e quatro de ditadura militar no Brasil.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

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