O Talibã visto por Lejeune Mirhan
Edberto Ticianeli
Em meio a informações e desinformações sobre os últimos acontecimentos no Afeganistão, vale a pena conhecer o que pensa quem estuda o chamado mundo árabe, com seus conflitos, cultura e história.
Uma boa oportunidade para isso está no canal Painel Brasil TV no Youtube, onde em Sempre um Bom Papo, a jornalista Rosa Sarkis entrevistou o sociólogo, professor, escritor e arabista Lejeune Mirhan.
Quem quiser assistir na íntegra à entrevista, pode vê-la no endereço https://www.youtube.com/watch?v=C93Z4CV7S7c.
Retirei do Excelente Papo algumas das avaliações do professor Lejeune. Reproduzo abaixo.
“O primeiro esclarecimento mais importante é que a tomada de Cabul é sim parecida, semelhante e até igual à tomada de Saigon em abril de 1975, quando os EUA fizeram pelo menos 80 viagens, cada uma levando 50 de helicóptero para evacuar quatro a cinco mil pessoas que estavam na capital do Vietnã.
É muito parecido. Os EUA não conseguiram em Cabul retirar o total dos funcionários da sua embaixada, mas não vai acontecer nada porque a orientação do Talibã é não atacar nenhuma embaixada, muito menos a dos EUA. O que eles menos querem agora é trazer para si a ira do mundo inteiro, porque já existe um preconceito em relação a eles, porque já governaram o país por cinco anos e não foi um bom governo. Eram reconhecidos somente por três países no mundo. Não havia legitimidade”.
Segundo esclarecimento
“Não basta dizer que os EUA sofreram uma derrota no Afeganistão. Não: a derrota é muito maior que isso. Se você olhar no mapa, ali é uma região da Ásia Central e o Afeganistão faz fronteira com três outros países, que terminam em ‘istão’, Turcomenistão, Uzbequistão e Tajiquistão, depois o Paquistão. Do lado esquerdo do mapa nós temos o Irã.
Portanto, os EUA sofreram uma derrota na Ásia Central. Não é pouca coisa a derrota. Não tem muita explicação para eles se manterem naquele país por 20 anos. Do ponto de vista econômico não significa nada, PIB muito pequeno, não tem petróleo, etc…
A presença deles [EUA] ali é muito parecida com o que significa Israel no meio de 400 milhões de árabes. É uma ‘cabeça de ponte‘ dos EUA bem ali no meio.
Na Ásia Central é a mesma coisa. Era a única presença dos Estados Unidos naquela região que faz fronteira com a China. Tudo ali cerca a China. Eles já estão cercando a Rússia lá em cima e agora o cerco à China.
Por isso que eles não saíram [antes]. Mataram o Bin Laden faz dez anos. O pretexto para eles estarem lá era caçar o Bin Laden. O Talibã não quis extraditar o Bin Laden, porque não podia ser de outra forma, e ele invadiram.
Três semanas depois que as torres gêmeas caíram, eles já estavam lá, com tropas que chegaram a 150 mil soldados de vários países. Claro que a maioria era dos EUA e da OTAN. É uma derrota dos EUA e uma derrota da OTAN”.
Terceiro esclarecimento
“Tenho lido e ouvido muitas pessoas dizerem e escreverem que o Talibã foi criado pela CIA. Não é verdade isso. Na verdade, até a Al-Qaeda dizia diretamente que foi. O que é que a CIA fez? A CIA financiou, treinou e armou pelo menos 90 mil militantes, guerrilheiros — goste ou não goste deles, eram guerrilheiros — que lutavam, entre 1979 e 1989, contra a União Soviética, que ocupou o Afeganistão por dez anos.
Então, esses guerrilheiros chamados mujahedins, lutadores islâmicos, foram apoiados pela CIA. A Al-Qaeda só surge lá no finalzinho, 78, 79, e é um grupo terrorista, que faz operações terroristas em vários países do mundo. O Talibã não é um grupo terrorista.
Eu classifico o Talibã como de fato um grupo guerrilheiro, que luta pela independência nacional — e essa luta é muito importante, por soberania nacional —, aspira o poder político, como já tomara no passado, e agora volta a ocupar o poder”.
Tratamento dado às mulheres e crianças pelo Talibã
“O Talibã de 20 anos atrás fez tudo isso que a gente sabe: proibiu as meninas de frequentar escola, as mulheres de trabalhar, a alfabetização mínima era somente para ler o Alcorão, mandava cobrir o corpo inteiro com a burca — não é um costume muçulmano, que manda cobrir só o cabelo, o rosto não precisa cobrir, é o chamado hijab —, que é um costume tribal afegão, só lá que tem isso.
Desde de sexta-feira eles têm dado declarações que o Talibã de hoje não é o Talibã de 20 anos passados. Têm mandado recados para o mundo, para evitar o seu isolamento, que farão um governo inclusivo e que as mulheres terão todos os direitos e poderão estudar, etc. Que querem manter relações diplomáticas com todos os países”.
Quem estaria por trás do Talibã hoje
“A China será seguramente o primeiro país que vai reconhecer o novo governo, que está sendo formado, tudo indica com Abdul Ghani Baradar, um mulá muito importante e um dos fundadores do Talibã, que foi criado em 1994, cinco depois que a União Soviética saiu do Afeganistão. Por isso que digo que não é a mesma coisa. Em 1994, até a Al-Qaeda já fazia oposição à CIA, o governo do Afeganistão estava em disputa.
[Abdul Ghani Baradar] é um cara moderado. Ele está vivendo exilado em Doha, Qatar. Deve estar chegando [no Afeganistão] a qualquer momento e talvez seja o presidente do país. O governo interino já está sendo montado com Abdul Jalil, que já foi ministro do Interior, e parece que os afegãos estavam concordando que ele mediasse a transição. Tem toda uma série de movimentos em que eles estão cautelosos.
A minha opinião é que o Talibã de hoje não fará aquilo que fez durante os cinco anos que governou o Afeganistão. É minha impressão, posso mudar de opinião no passar dos dias.
…
Acho que tendo a China como avalista do processo, eles tomarão muito cuidado em ter uma postura obscurantista, como já tiveram, para não dificultar as relações diplomáticas. A Rússia vai ser a segunda a reconhecer [o governo]. O Irã, que não é sunita, deve ser um dos primeiros a reconhecer.
Alguns dizem que os EUA fizeram um acordo com eles. Desocupou para instalar um governo sunita que vai fustigar o Irã. É mais uma bobagem que vi escrito e falado esses dias”.
Ocupação sem autorização da ONU
“Eles chegaram a ter 150 mil soldados lá. Dos EUA 100, 110 mil, o resto era França, Alemanha, Canadá, Austrália, era uma força multinacional liderada pelos EUA, que ocuparam o Afeganistão à revelia da ONU.
Esta foi uma decisão que feriu o Direito Internacional. Os EUA é hoje um estado bandido, um estado pária, que vive à margem do Direito Internacional. O ataque à Líbia em 2011 foi à margem do Direito Internacional. A ocupação do Iraque em 2003 foi à margem do Direito Internacional. A ONU não aprova essas coisas. Não passa na ONU. Eles não têm mais maioria, mas têm aliados. E grandes aliados, todos países imperialistas: Alemanha, França, Inglaterra…
A Inglaterra perdeu no Afeganistão mais de 500 soldados, os EUA 2.500, depois tem a França, a Austrália… Eles perderam lá 3.500 soldados e mais 3.800 estadunidenses contratados como paramilitares. São mercenários. O total de baixas chega a 7.500. As forças do Exército afegão perderam 60.000 e mais 120.000 civis.
Os EUA gastaram US$ 2 trilhões, equivalente a R$ 10 trilhões, dois PIBs do Brasil, a troco de quê? Para fazer o quê? É geopolítica. É uma região onde eles nunca tiveram presença e tentaram fazer nos últimos 20 anos de forma militar e agora perderam, saíram com o rabo entre as pernas”.
Papel da Indústria armamentista
“Alguns autores usam o termo Deep State, Estado Profundo, nos EUA. Eu não concordo com esse termo. Para mim é muita Teoria da Conspiração. O que é Deep State? É o complexo industrial militar. São as corporações dos EUA que têm que ser protegidas e a indústria armamentista que tem que vender armas para o mundo inteiro. Isso é o que manda lá nos EUA. É isso que determina o que deve fazer o chefe do Império, que é ao mesmo tempo o presidente do país.
Por isso que, seja Biden, Trump, Republicano, Democratas, bonzinho ou malvado, simpático ou antipático, bom coração ou mau coração, não importa: ele tem que lutar pela hegemonia dos EUA, defender os interesses das corporações e vender armas, e algumas armas ultrapassadas.
Por exemplo, os mísseis Patriots, que foram usados na primeira guerra do Golfo em 1991 e na segunda em 2003, já estão superados. A Arábia Saudita, o ano passado, comprou milhões de dólares em sistemas de proteção antimísseis do sistema Patriots, que hoje não consegue derrubar um simples drone de dez mil dólares.
A guerrilha iemenita, que luta para derrubar o governo pró Arábia Saudita no Iêmen, e já está derrubando, ganhando e avançando, esta guerrilha liderada pelos houthis, que são de maioria islâmica xiita, lançaram outro dia um drone e ele viajou três mil quilômetros sobre o território saudita e caiu em cima da segunda maior refinaria do mundo, parando a produção de petróleo na Arábia Saudita. Um dronezinho de dez mil dólares.
O sistema de antimísseis deles, sucateado, velhos, vendidos pelos EUA, não funcionaram. Dispararam, mais nenhum atingiu o drone.
Os EUA venderam a semana passada armas para Taiwan. Setecentos milhões de dólares em blindados. Estes eram modernos, o que irritou muito a China.
Agora eles deixaram lá no Afeganistão milhares de equipamentos, armas, aviões, blindados, que agora está tudo na mão do Talibã, que é hoje muito mais forte de que quando chegou em Cabul.