O escritor fantasma

Miguel Gustavo de Paiva Torres
MEMÓRIAS DE PRAGA

Entre o início do ano 2000 e o final do ano de 2001 houve uma transformação visível na cidade de Praga: shoppings centers, bares modernos, restaurantes gastronômicos, redes de supermercados, salas de cinema; hotéis com bandeiras internacionais, livrarias e salões de beleza chiques. Um mundo novo para os checos.

Vivi, junto com a minha família, o mundo precedente, simples, ainda igualitário, quase ingênuo e muito barato. Baratíssimo para padrões europeu e internacionais.

O meu primeiro corte de cabelo, em Dejvice, bairro onde ficava nosso apartamento temporário, foi no térreo de antigo prédio, em espaço enorme, com mais de 20 cadeiras de barbearia e uma fila de espera, para cortes de cabelos, feitos por lindas jovens checas.

Bem. Não era o nosso tradicional corte de cabelos com pentes e tesouras. Era na máquina que as meninas raspavam os seus cabelos no ponto desejado, de 0 a 3.

Em menos de cinco minutos serviço terminado. O preço: 20 centavos de dólar. Paguei um dólar e disse que ficasse com o troco. Sorriso inesquecível.

Já existia um supermercado moderno, o Tesco da Inglaterra, com duas lojas: uma no centro da cidade, média, outra na periferia, grande.

No mais, as lojinhas de frutas e verduras, brinquedos, papelarias, padarias; e a maravilhosa feira livre semanal e as sazonais, de Natal e Páscoa, na cidade velha.

Restaurantes e “cafés” elegantes e antigos, no estilo imperial austro-húngaro, com muita fartura e preços baixos.

A grande loja de departamentos Kotva, construída em concreto armado e formas geométricas, no estilo da escola checa da “arquitetura bruta”, na Praça da República, com suas prateleiras escassas de produtos, era o sonho de consumo dos checos e eslovacos.

Padarias, com pães divinos, um capítulo à parte. Ainda persistiam, no ano 2000, as longas filas de clientes características da época comunista. Fila nas padarias, aparentemente, já era uma tradição urbana.

Bati perna na cidade inteira. Nas livrarias centrais de bairros, estavam expostos livros, jornais e revistas somente em língua checa.

Na vitrine, sempre realçados com destaque, as traduções dos livros mais recentes do brasileiro Paulo Coelho.

Nas prateleiras internas e nos antiquários de livros, Jorge Amado. Todos os livros de Jorge Amado disponíveis, traduzidos em língua checa.

Achei estranho não ver qualquer livro de Franz Kafka. Afinal era o escritor checo mais famoso no mundo, apesar de ter escrito sua obra em língua alemã, considerada língua da elite em sua época, a par com a língua francesa.

Na embaixada perguntei aos funcionários checos onde ficava a casa de Franz Kafka na cidade.

Ninguém sabia. Tinham ouvido falar de um escritor checo chamado Kafka, muito querido por brasileiros que passavam por lá, mas não tinham a menor ideia sobre os escritos desse sujeito, muito menos sobre uma suposta casa na qual teria vivido em Praga.

Em Praga, e no resto do território da cortina ferro do mundo comunista, as pessoas não conheciam a obra desse escritor fantasma, proscrito no regime comunista por suas reflexões sobre a opressão do estado e a flor carnívora da burocracia com suas teias surreais, mortais.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

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