Submarino amarelo

Miguel Gustavo de Paiva Torres
MEMÓRIAS DE PRAGA

Depois de passar pelo ritual de procurar casa, repetindo o sacrifício de ver tudo o que não serve para finalmente chegar ao que serve, aluguei um belo duplex, reformado por um arquiteto francês, em um prédio clássico da conhecida rua Cechová.

Situada entre os dois mais lindos e famosos parques da cidade alta, o Stromovká e o Letna, a rua Cechová ficava por trás do estádio do Sport Club Sparta, delírio das multidões.

Atrás da Cechová estava a Escola de Belas Artes de Praga. Todo o ambiente ao redor era cercado de paz, tranquilidade e discreta boemia, com bares nas calçadas, clube de jazz, restaurantes, lojinhas nos subsolos e salão de bilhar.

Da janela do meu apartamento eu podia ver o letreiro do Yellow Submarine, com o submarino desenhado em amarelo e preto. Ainda resistia aos novos tempos.

Fora um bar do “underground” na época comunista. Literalmente, porque ficava em um subsolo e sempre com portas fechadas, abertas apenas para clientes conhecidos: músicos, poetas, filósofos, escritores, estudantes, aprendizes das belas artes; contestadores dos regimes transitórios marcavam encontro no Submarino Amarelo, com o seu periscópio observando a minha rua e a minha janela aberta.

Em toda a extensão da minha rua, e no quarteirão em volta, só havia o nosso apartamento devolvido ao proprietário privado. A lei de restituições promulgada pelo parlamento checo, ao término do regime comunista, previa que as restituições de moradias teriam que contemplar prazos longos e indenização suficiente para a aquisição de imóvel similar na mesma região de residência dos ocupantes do imóvel.

A questão era fulcral no processo de abertura e democratização. Envolvia centenas de milhares de famílias que haviam ocupado imóveis privados.

Antigas residências de judeus exilados e exterminados durante a ocupação nazista — grande parte da elite checa — e de todos os demais que partiram para o exílio durante a ocupação soviética, deixando seus bens móveis e imóveis nas mãos do regime comunista.

O processo já estava em curso e o nosso apartamento foi um dos primeiros imóveis recuperados, com base na nova lei, pelo proprietário residente na França.

Todos os demais apartamentos do prédio se beneficiaram com o elevador colocado pelo dono do meu duplex, localizado no último andar do prédio, com vista para os quatro cantos da cidade, na frente, laterais, e no moderno janelão colocado nos fundos.

Os vizinhos eram gentis e educados, à exceção de uma velha rabugenta e ranzinza que vivia às turras, com todos, no térreo. Não precisava do nosso elevador. De vez em quando minha esposa soltava os cachorros em cima dela e a pacificava por um tempo.

Nós éramos cinco no duplex. Eu, minha esposa, dois filhos adolescentes e Noé Flores.

Noé era um jovem mexicano que trabalhou como nosso chofer na Cidade do México, muito querido por todos nós.

Aceitou assinar contrato de trabalho e seguir conosco para Praga. Vivia conosco. Fazia parte da família. Viveu a grande aventura da vida dele.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

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