A Grande Revelação: a volta dos que nunca se foram
Sérgio Braga Vilas Boas
Em 1936, Charles Chaplin expôs mais uma vez sua genialidade através do filme Tempos Modernos. Ali, o gênio utilizou-se de elementos de então para desenhar uma situação que estava longe de ser apenas conjuntural.
O filme retrata a vida dos operários americanos nos duros tempos pós-crise de 1929. Também aborda de forma soberba a relação capital-trabalho dentro das paredes da indústria. Aspectos da luta de classes.
A cena inicial apresenta um rebanho de ovelhas saindo da fábrica. Em sua sequência esse mesmo rebanho é substituído por operários. O filme em seu andamento também destaca a relação do operário com as modernas padronizações de tempos e movimentos como parte da organização da produção.
O mais “cômico”, se obviamente não fosse tão trágico, é que o presidente da fictícia “Eletro Steel” controlava tudo e todos através de um moderno sistema de câmeras de TV de dentro do seu escritório, enquanto brincava de quebra-cabeças e lia gibi.
Enfim, um filme que é preciso ser visto. Um marco na história do cinema. Naqueles 88 minutos a arte, como só ela sabe fazer, teceu de forma contundente a sua crítica ao moderno capitalismo da época, em que o poder do capital tragava trabalhadores como um moedor de carne.
Passados os anos, de 1936 até os dias atuais, para a nossa tristeza, o capitalismo metamorfoseou-se, mas o DNA continua o mesmo. O gênio, no passado, pintou um quadro que quisera ter sido retrato de uma época, mas que infelizmente parece ter movimento. Mudam personagens, espaço, tempo, instrumentos, e até métodos, mas a coisa continua igual.
A história nos oferece exemplos os mais diversos possíveis, sob a mais variada temporalidade e espacialidade. A engrenagem parece não voltar, mas sim nunca ter ido. Em cada contemporaneidade descobrimos sua face mais cruel escondida muitas vezes no que se apresenta como a panaceia do mundo de então.
Após a primeira revolução burguesa da história, dirigida por Cromwell, em 1640 na Inglaterra, numa sequencia de marchas e contramarchas, a burguesia se consolidou no poder, acumulou capital e pode realizar a primeira revolução industrial – no século 18.
O capitalismo inglês vai viver a partir daí um intenso processo de desenvolvimento, com a superação do trabalho artesanal, posteriormente da produção manufatureira e, a partir da introdução das novas máquinas, com o surgimento das grandes fábricas. É nesse momento, meados do século 18, que o capitalismo encontra plena condições para se expandir e tornar-se o sistema predominante.
No início, eram impostas jornadas de trabalho que atingiam até 16 horas diárias, os salários eram extremamente reduzidos e as condições de trabalho se assemelhavam às do escravismo.
A introdução do novo objeto de produção, a máquina, representa um golpe que atinge certeiramente os artesãos (que representavam a mão-de-obra especializada) e suas corporações, que tinham grande poder de barganha, e permite introduzir a mulher e o menor no mercado de trabalho, com salários mais aviltados e em piores condições de trabalho.
Leo Huberman, no livro “História da Riqueza do Homem”, descreve o brutal processo de rebaixamento do nível profissional. Ele cita, por exemplo, o depoimento de uma criança de 11 anos a uma comissão do parlamento inglês, em 1816:
“Sempre nos batiam se adormecíamos. O capataz costumava pegar uma corda da grossura do meu dedo polegar, dobrá-la e dar-lhe em nós. Eu costumava ir para a fábrica um pouco antes das seis, por vezes às cinco, e trabalhava até às nove da noite. Trabalhei toda a noite certa vez”
Todas essas condições subumanas de trabalho vão gerar resistência entre os trabalhadores. Porém, até encontrar formas mais eficientes de se contrapor a tais absurdos há um longo processo de aprendizado.
Em 1906, nos Estados Unidos, o jornalista Upton Sinclair publicou o romance “A Selva”, onde denuncia as práticas comuns da indústria da carne daquele país. Sinclair faz o relato reproduzido a seguir, como uma amostra da selvageria que envolvia as relações capital-trabalho e a ausência total de ética que norteava a busca pela riqueza entre os barões da indústria americana:
“Nunca se prestou a menor atenção ao que era usado para se fabricar salsichas; da Europa voltavam salsichas velhas que haviam sido rejeitadas, e que estavam mofadas e esbranquiçadas depois de longa viagem. Acrescentavam a elas doses de bórax e glicerina e jogavam-nas nos misturadores, onde eram reprocessadas para consumo no país. Usavam pedaços de carne que tinham caído no chão, na terra e na serragem, onde trabalhadores doentes haviam caminhado e cuspido incontáveis bilhões de germes de tuberculose. Usavam carne guardada em grandes pilhas, dentro de cômodos fechados: a água pingava das goteiras do telhado sobre a carne, e milhares de ratos corriam sobre ela. (…) Esses ratos davam prejuízos, e se colocava pão envenenado para eles. Eles morriam, e em seguida iam pão, ratos e carne juntos para os moedores. (…) Tendo um dia escorregado e caído num nível mais baixo da fábrica, um trabalhador terminou por ser enviado, sem qualquer suspeita, para consumo, como “Pura Gordura de Vaca Durham’s”!”
Quando o então presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, nomeou uma comissão para investigar a narrativa horripilante de Sinclair. A comissão relatou que a história era essencialmente verídica e o Congresso Americano promulgou imediatamente a Lei de Inspeção para a Carne, de 1906.
O jornalista pretendia que seu livro fosse um forte apelo à revolta contra as péssimas condições de trabalho e, como ele próprio observou posteriormente, “era dirigido ao coração do povo americano, e atingiu, em vez disso, seus estômagos”.
Revivo essas lembranças em função do debate que persiste sobre o que efetivamente vem a ser liberalismo. Seria o liberalismo uma espécie de licença para caçar?
Segundo Alexandra Strommer Godoi, doutora em Economia de Empresas e professora da Escola de Administração de Empresas da FGV (EAESP-FGV): “O Liberalismo, por definição seria uma doutrina desconfiada do poder, que procura defender e expandir a liberdade do indivíduo. O estado é necessário para garantir que as pessoas não se prejudiquem, todavia abre espaço para que haja abuso de poder contra os indivíduos”.
Segue: “Contudo, apesar desse foco do liberalismo na ideia de liberdade, o que seria liberdade? Liberdade parece ser um conceito mal definido. Liberdade é não ser constrangido, mas o que é que te constrange: é o outro, é a doença, é a lei, é a pobreza, é discriminação? Dependendo de como as pessoas entendem o que seja liberdade, desenvolvem um conceito de liberalismo que pode ser contraditório com o de outros liberais”.
Ainda: “Adam Smith defendia que além da liberdade política e religiosa, deveria haver também liberdade econômica, em que os negócios da burguesia não fossem constrangidos com regras abusivas e arbitrárias estabelecidas pelo estado que protegia os grandes monopólios (Cia das Índias Ocidentais, por exemplo)”.
Maria Ignez S. Paulilo, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC, em resenha do livro “A Grande Transformação: as origens da nossa época”, de Karl Polanyi, escreve que o autor conclui assim sua obra:
“É possível combinar a sociedade complexa, que necessita de regulamentação e controle para sobreviver, com a liberdade individual? O liberalismo, cuja defesa da liberdade se deve à ilusão de que a sociedade seja modelada apenas pelo desejo e a vontade dos homens, criou impasses que acabaram por dar origem ao fascismo. Onde estaria, então, a falha? Estaria, para Polanyi, no conceito de liberdade exclusivamente no sentido individual. Para ele, há necessidade de uma redefinição não mais em função do homem, mas da sociedade. O homem deve ter consciência de que a liberdade de que pode desfrutar é a liberdade possível, isto é, limitada pela sociedade. Este conhecimento deve ser algo similar ao conhecimento da morte. Diante do inevitável, a solução seria não gastar energias contra o impossível, mas usá-las para obter todo o possível”.
Marx e Engels, em “A Ideologia Alemã”, cujo conhecimento se tornou público apenas em 1932, mas a conclusão se deu oitenta e seis anos antes, em 1846, afirmam — aqui em palavras minhas — que a realidade objetiva era condição “sine qua non” na formação de ideias do indivíduo e da própria sociedade, principalmente quanto ao modo de produção da sua vida material, e que este é que determina o caráter geral dos processos da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens o que lhes determina a realidade objetiva, mas, ao contrário, a realidade social é que lhes determina a consciência.
Para concluir, podemos discordar do filósofo Fredric Jameson, no livro “A Cultura do Dinheiro”, que já advertia no início do milênio: “Os quatro pilares ideológicos, jurídicos e morais do alto capitalismo – constituições, contratos, cidadania e sociedade civil – são, hoje, vadios maltrapilhos, mas sempre lavados, barbeados e vestidos com roupas novas para esconder sua verdadeira situação de penúria”. Não, meu caro Frederic, não são hoje. E tanto faz que estejamos no princípio do milênio ou agora: sempre foram vadios maltrapilhos.
Se a juventude lesse e analisace história como essa, certamente, saberia escolher melhor seu governante e, assim, se livraria de um perveso tipo Bozo.