Club de Jazz
Miguel Gustavo de Paiva Torres
O som pungente e prolongado do saxofone penetrava o silêncio e os desenhos da fumaça azulada na sala, à meia-luz, do Club de Jazz de Santiago, docemente varrido na suavidade dos pratos da bateria, enquanto o piano lembrava que havia vida lá fora.
Foi a nossa Igreja. O nosso templo no meu pedaço de vida nas terras chilenas, entre o mar, o deserto, a neve, as montanhas, as florestas e o sangue.
O sangue dos corpos jogados no rio, que atravessava a cidade, por um senhor general com bigodes e óculos escuros, escondendo a dor dos outros e a verdade do mal.
O Rio Mapocho, com suas lindas e suaves corredeiras azuis e verdes, nas primaveras e verões, marcou eternamente a alma ferida do Chile.
Muito tempo ainda há de passar e a terra rodar para lavar as dores e os temores dessa alma coletiva jogada à danação pelas armas e pela morte brutal e antecipada de tantas e tantos.
Nessa mesma Santiago, aquele casarão novecentista no antigo bairro de Nunoa, resquício de um passado da urbanidade social da cidade, albergava o mais antigo Club de Jazz da América Latina.
Todos os sábados a alegria voltava ao coração. Noite de Jazz no casarão, com seu pátio refletindo nas estrelas e luas as notas do improviso da música da criação dos sonhos mais profundos, esvanecendo como fumaça no som da eternidade.
Fundado em 1943, entre amigos, assim continuou, entre amigos e convidados, até seu final no terremoto do ano de 2010. Médicos, engenheiros, professores, diplomatas, estudantes, empresários, burocratas, todos juntos em uma só profissão e paixão: Jazz.
Conhecido por grandes músicos de Jazz do mundo inteiro, particularmente os norte-americanos, atraía visitas surpresas sempre que havia um concerto com grandes nomes na cidade.
Sabiam do Club, iam lá e tocavam em canjas que iam até o sol raiar. Assim foi, na minha época, com Winton Marsalis, Paquito de Rivera e muitos outros. Foram tantos que perdi a conta.
Foi lá que fiz amizade fraternal com Antonio Gaete, Patricio Venegas e Eduardo de la Fuente, que passaram a frequentar minha casa quase como uma extensão do Club.
Eram fascinados pela música popular brasileira e conheciam tudo dela, pelo menos mais do que eu, que me achava conhecedor.
A deusa era a Elis Regina. Os tronos dos deuses eram ocupados por Djavan, Tamba Trio, João Gilberto, Jobim, Vinícius… Conheciam quase tudo, inclusive o forró e o baião.
Não sei cantar e não sei tocar. Mas sei ouvir. Com whisky, pisco, Jazz e MPB atravessamos todos os desertos, mares e montanhas do mágico Chile, bela colcha de retalhos na nossa Mãe Terra.