A Pauta do Crime

Miguel Gustavo de Paiva Torres

Nos anos 60 e 70 as notícias que vendiam jornais populares destacavam a prática de recolher e atirar os mendigos da Guanabara no rio Guandu para limpar a bela cidade do Rio de Janeiro. Nesses jornais espremia-se diariamente o sangue dos miseráveis para deleite dos que queriam uma cidade exclusiva. Com o avanço tecnológico, a televisão e o celular assumiram a responsabilidade por esta sangria desatada.

Conheci essa realidade de perto. Foi mergulhando nela que recebi o meu batismo no jornalismo de âmbito nacional, no Rio de Janeiro, na redação do extinto Diário de Notícias, sob a direção do competente João Rath.

Egresso da província, onde trabalhei no semanário o Estado de Alagoas e no Jornal de Alagoas, dos Diários Associados, conhecia superficialmente a cidade maravilhosa, que naquela época ainda estava resumida, para consumo da classe média dourada e branca da cidade, na ensolarada e azul Zona Sul.

O simpático e bonachão João Rath me repassou para o veterano e respeitado jornalista Gilvandro Gambarra, editor da seção de polícia do jornal. A ideia, segundo me disseram, era a de me fazer conhecer a fundo a cidade do Rio de Janeiro para posteriormente me promoverem a uma seção de maior prestigio no jornal.

O horror, ah o horror, foi o que o destino me reservou nos meus primeiros passos no jornalismo carioca. Durante um ano compartilhei do companheirismo e amizade dos repórteres “profissionais de polícia”, grupo reduzido e marginalizado nas grandes redações, formados na escola da vida e mestres das ruas.

Aos vinte anos e com pretensões intelectuais, me vi jogado na realidade de uma cidade e de um país que não conhecia e que ninguém do meu círculo social de classe média, embalado pelo romantismo da bossa nova, da garota de Ipanema e do sonho do país tropical, tivesse a menor ideia de que existisse.

Era outro Brasil dentro do Brasil. Mas um Brasil enorme, injusto, iníquo, violento e cruel, que poucos conheciam. E porque não conheciam? Porque simplesmente não estava na pauta. Os temas de polícia e crime estavam restritos à última página dos jornais respeitáveis, como o Jornal do Brasil, da Condessa Pereira Carneiro, O Globo, da família Marinho, O Estado de São Paulo, da família Mesquita, círculo de prestigio onde pretendia também incluir-se o tradicional Diário de Notícias, fundado por João Dantas.

O crime, a violência e o conflito social extremo eram assuntos para os jornais da chamada plebe ignara. O Dia, de Chagas Freitas, A Luta Democrática, de Tenório Cavalcanti e outros jornais afins no Rio e em São Paulo vendiam como água no deserto.

Certamente não eram lidos e sim execrados pelos leitores do Pasquim, Opinião e Veja, expoentes da esquerda boêmia de mesa de bar da minha geração. O cadáver estava no armário e a sujeira embaixo do tapete.

Televisão então, nem pensar. Novelas e musicais, com a política e a economia dominando os telejornais.

A partir da década de 80 tudo mudou.

Em uma velocidade e amplitude desconcertante, a minha antiga e modesta seção de polícia pulou para as primeiras páginas e o sangue dos jornais televisivos passaram a respingar e depois a jorrar nos salões dos estupefatos e privilegiados cidadãos, que não tinham a menor noção sobre o país real em que viviam.

Essa exposição foi importante para a ampliação da discussão política e social no país, mas também movimentou o inconsciente e a consciência da juventude das periferias oprimidas e marginalizadas, que se viram nas telas diariamente como protagonistas da história social do país.

O grande jornalismo brasileiro passou a ser factual e deixou de lado, restrito a canais seletivos na TV fechada, a análise e a opinião. Abriu mão também da discussão pública de temas importantes e necessários ao país.

Os lucros da mídia cresceram exponencialmente e a criminalidade explodiu do Oiapoque ao Chuí. Não por culpa da imprensa e da televisão, é claro, porque ela sempre esteve lá, no morro que você via da janela do seu apartamento, mas porque o tempo do país do faz de conta tinha ficado no passado, quando ninguém queria reconhecer o país atolado no lamaçal dos esgotos a céu aberto, das escolas fechadas, das obras inacabadas, da promiscuidade entre  crime organizado, judiciário e política.

A miséria foi exposta em tiroteios urbanos da Zona Sul do Rio de Janeiro e no sertão do Cabrobó, passando pela avenida Paulista.

Já não havia mais o romantismo dos bandidos cinematográficos incensados por intelectuais e pela classe média, como Lúcio Flávio, a quem entrevistei quando repórter. O bandido da luz vermelha se apagou e o esquadrão da morte da Scuderie Le Cocq, do delegado Humberto de Matos, perdeu prestigio junto aos que defendiam a pena de morte entre um Martini e um whisky duplo on the rocks.

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